Dia desses, passei algumas horas me conectando comigo mesma, com meu corpo – tão negligenciado nos últimos anos – numa oficina de danças afro. Recentemente, percebi que tratei meu corpo como mero meio (para o trabalho mental), ao invés de dispensar um tratamento digno que o considerasse um fim em si mesmo. No entanto, dessa constatação não decorreu imediatamente um movimento de superação desse limite. Cada vez que uma médica ou uma terapeuta me recomendava fortemente fazer atividade física (sob a pena de meu corpo me impor limites e me fazer parar e olhar para ele, da pior maneira possível), eu imediatamente criava barreiras e pensava como seria difícil transpor minha absoluta falta de vontade para ir à academia ou, se eu não estivesse interessada nesse ambiente fechado (como nunca estive), simplesmente sair para caminhar como parte da minha rotina diária. 

Tentei fazer alguns movimentos em direção a essa superação. Por três anos consecutivos, consegui fazer pilates com uma profissional que me acolheu e entendeu os meus limites. Apesar de as aulas terem sido muito prejudicadas, em alguns períodos, pela minha rotina de viagens a trabalho e estudo, tive uma professora que sempre manteve o seu compromisso em me ajudar e possibilitar que eu saísse da aula melhor do que eu havia entrado. Eu chegava sempre com tantas dores na lombar e na cervical que, em todos esses anos, eu mal consegui sair do alongamento e trabalhar força. Não tenho dúvida que essa prática foi crucial para que eu não tivesse literalmente travado nestes últimos anos, mas ainda me faltava fôlego. 

Lembro bem de um episódio que aconteceu em janeiro de 2015. Eu estava de férias e, numa passagem por Porto Alegre, fui ao cinema assistir Brincante – o Filme, que – de forma lírica – conta a história do artista pernambucano Antônio Nóbrega. Aos meus olhos, biografia, resistência e a lindeza da cultura popular se fundiam em perfeita harmonia.

Em algum momento do filme, desatei a chorar e a me perguntar: “o quê que eu tô fazendo com meu corpo?” Tonheta, o personagem, perguntava: “Estás com goteira no pulmão ou engarrafamento nas artérias? Estás com ferrugem nas juntas ou soltura nos intestinos?” Apesar de ter sido muito tocada – senti uma vontade imensa de sair da sala de cinema pulando e brincando – fui incapaz de mobilizar esse desejo e transformá-lo em ação. 

Muitas e muitas vezes eu me perguntei sobre os motivos desse descompasso. Na escola, eu sofria com as aulas de educação física e tinha vontade de sumir quando saíamos da sala para ir à quadra. No mata-soldado, era o meu medo de ser acertada pela bola que fazia com que, de vez em quando, eu fosse uma das últimas a ser o alvo – para aumento da minha tortura. Eu costumava associar o medo de ser machucada pela bola ao fato de não ser boa nos esportes coletivos, à dificuldade para lidar com a competitividade, à timidez e à vergonha. Recentemente, assistindo esse vídeo de Louie Ponto, percebi que talvez o que eu considerasse ser timidez e vergonha era também ansiedade, mas esse já é outro assunto. Além disso, desde a pré-adolescência, quando comecei a andar um pouco mais sozinha pela cidade, a pé ou de ônibus, eu me sentia ultrajada com qualquer tipo de assédio. Era um misto de repulsa e medo daqueles homens que mexiam com um menina na rua, que anos depois – já feminista – fui compreender como uma forma de violência. Acredito que essa combinação do assédio com a preguiça que me acompanhou durante a adolescência marcaram, ao menos em parte, a minha forma de estar no mundo até hoje. Mas, apesar da falta de aptidão para os esportes e da preguiça juvenil, tinha algo que eu amava: dançar. Aos 7 anos, comecei a fazer jazz. No início, eram duas vezes por semana. Uns três anos mais tarde, fui promovida à turma das meninas mais velhas e passei a ir três vezes por semana.

Eu gostava tanto, mas tanto, de dançar que houve épocas em que eu não andava: eu me deslocava dançando. Eu acompanhava minha mãe na fila dançando; eu saía da mesa do almoço e ficava fazendo espacate na cozinha. Eu tinha uma flexibilidade incrível!

Uma vez, minha prima ficou tão irritada comigo que me mandou parar de dançar. Não lembro se estávamos num estacionamento de mercado ou num shopping. Fiquei meio chocada e bastante constrangida com a reação dela (minha prima era minha ídola), acho que fiquei um pouco quieta em seguida, mas não me abalei por muito tempo. 

Depois de 5 anos de jazz, aos 12 anos eu parei abruptamente de fazer atividade física. Apesar do amor pela dança, eu me vi limitada onde estava e, sem ver a possibilidade de seguir por outro caminho, desisti. Na cidade onde nasci e fui criada, Joinville, acontece o maior festival de dança da América Latina. O lugar onde eu fazia jazz era uma sociedade recreativa de uma grande empresa da cidade, perto de onde eu morava, e, portanto, ficávamos no campo do amadorismo. Em julho, quando acontecia o festival, chegávamos a nos apresentar em alguns palcos livres – em shoppings, praças e empresas -, mas nunca competimos, nem chegaríamos a fazê-lo.

Desconfio que meu sonho não era necessariamente competir, mas ser uma dançarina melhor e mais reconhecida. Eu queria ser boa na dança; não necessariamente a melhor. Tinha algo de superação individual… quando cheguei num limite intransponível para mim naquele momento, desisti.

A única saída que eu vislumbrava era mudar para uma escola de dança melhor, mas isso significava uma mensalidade bem mais cara – que naquele momento minha família não poderia suportar. Nessa época, além da escola privada, eu já fazia um curso de inglês em uma boa escola. Eu já era bastante privilegiada, apesar de levar muitos anos para reconhecer isso depois.

Contudo, passei duas décadas sofrendo com a ausência da dança no meu dia-a-dia. Levei todo esse tempo também para ir novamente assistir uma apresentação do festival. Muitas vezes, cheguei a me sentir uma bailarina frustrada e fiquei imaginando qual rumo eu teria tomado se tivesse escolhido seguir esse caminho, talvez até profissionalmente.  Duvido se eu realmente teria potencial para isso, mas de vez em quando esse pensamento povoava meu imaginário.

Fui fazendo outras escolhas e, hoje, me sinto feliz também com o lugar no qual cheguei, como profissional. A filosofia e a educação dão sentido e alegria ao meu dia-a-dia. Mas eu continuo com o problema de dar muita atenção para a mente, esquecendo que eu sou corpo também. 

Passada a fase adolescente de ficar jogada no sofá, consegui perceber que meu problema não era simples preguiça de mexer o corpo. Afinal, eu adoro passar horas fazendo trilha (já viajei para lugares onde a programação era basicamente passar os dias fazendo longas caminhadas) e não recuso um convite para dançar. Às vezes, não preciso nem de convite… mesmo que eu não tenha uma companhia, por uma boa música eu saio até sozinha e passo horas dançando bem feliz. O problema, obviamente, é que numa rotina de intenso trabalho intelectual como tem sido a minha na última década (leia-se: sentada boa parte do dia, lendo e escrevendo, ou em pé falando), caminhadas e saídas para bailar entravam na categoria “lazer” e, portanto, eram bem esporádicas. Meu desafio sempre foi compor uma rotina de saúde integral, para o corpo e a mente. 

O outro problema era a minha concepção sobre o que era atividade física. Algo que só me dei conta agora é que dança e atividade física, por mais bizarro que pareça, eram coisas de duas ordens diferentes para mim. No meu universo particular, é como canta Caetano: 

E aquilo que nesse momento se revelará aos povos

Surpreenderá a todos não por ser exótico

Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto

Quando terá sido o óbvio

Atividade física era esporte e dança era arte. Arte que calhava de demandar fôlego. Haja fôlego! E eu não era uma artista. Logo, a dança caía novamente naquele lugar do lazer, sem integrar minha rotina de forma orgânica. Fui estruturando minhas crenças de forma binária: corpo/mente, trabalho/lazer, dança/atividade física, esporte/cultura. Ironicamente, essa visão dicotômica e, arriscaria dizer, colonizada da saúde física (apartada da mental), o que era para ser bom para o meu corpo, era prejudicial para minha mente. E eu privilegiei a mente até meu corpo berrar tão alto que eu não pudesse mais ignorá-lo. 

Foi estudando filosofia que aprendi sobre os estragos do pensamento cartesiano. Há uma série de outros dualismos que, associados a uma lógica de dominação, estabelecem uma hierarquia entre o que é bom, válido de um lado e ruim, inválido de outro. Ainda é cedo para dizer, mas acho que finalmente estou conseguindo superar uma face do dualismo mente/corpo, quando ele implica também separar saúde mental da física. Descobri, da pior maneira possível – com uma depressão braba -, que não tem como a cabeça ficar boa quando o corpo está doente. No entanto, aprendi com a filosofia ecofeminista que todas as formas de opressão estão conectadas – machismo, racismo, especismo e todos os outros “ismos” de dominação. Assim, precisamos nos libertar conjuntamente de todas elas. Por isso, tenho feito um grande esforço para não introjetar uma culpa individualista. Ainda que as escolhas sejam minhas, e as mudanças dependam, em boa medida, só de mim, há um conjunto de circunstâncias materiais que me condicionam. Pode ter sido só falta de imaginação minha não ter tido algumas ideias antes, mas pode ser que isso fosse reflexo também de tantas vezes que me orientaram a puxar ferro como algo normalizado nos espaços urbanos, onde sempre vivi. Há quem goste (e tá tudo bem), mas ninguém deveria sofrer porque não dá conta – seja por não se identificar com esse tipo de atividade, por estar sobrecarregada demais com trabalho remunerado e não remunerado (as tarefas de cuidado) ou mesmo por não poder pagar uma mensalidade de academia.

Nesse meu processo de auto resgate e de necessidade urgente de cuidado com o corpo e a mente, tenho feito um exercício diário em busca da descolonização da atividade física, com imposição de alguns valores. Para mim, tenho sentido que ela faz muito sentido quando associada à cultura popular: as danças dos orixás, o samba, o forró, o maracatu… Por meio da arte dançante que resiste às atrocidades de quem nega a diversidade, me conecto com meu território e minha ancestralidade, na integralidade do meu ser: corpo, mente e espírito.

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