Aos olhos de todos, parecia uma jovem retraída, mas que conseguia criar vínculos de amizade. Veio do interior do interior do Brasil aos 12 anos, para cidade grande, para morar com a duas irmãs mais velhas, levada pela própria mãe. Por quê?

Com o passar do tempo, entre idas e vindas para sua terra natal, começou um noivado com uma pessoa de lá, mas continuava morando na cidade grande, onde fez a escolha entre continuar os estudos ou trabalhar. Conseguiu emprego e lá conheceu um homem, bem mais velho, por quem se apaixonou. Algum tempo depois, decidiu voltar à sua cidade natal, para desfazer o noivado e vir morar na cidade grande em definitivo com o seu amor, que tinha alguma resistência à continuidade do relacionamento por conta da diferença de idade. Por fim, casaram-se.

Veio a primeira gestação. Muita expectativa e ansiedade pelo primeiro bebê. Através de um parto normal, com pequenas complicações, veio seu primeiro filho. Sua expectativa era de ter uma menina, mas veio um menino! Tudo normal até então. Um casal feliz e seu bebê, elogiado por todos como o mais bonito da família do marido, segundo ela própria.

Dois anos depois, a segunda gravidez. Não planejada e aguardada com anseio e expectativa ainda maior que a primeira. Uma gestação um pouco mais conturbada, em que seu comportamento, estranhamente, foi se modificando. A morte de uma sobrinha de um ano, por conta de problemas cardíacos, também deixou-a chocada, aflorando ainda mais seus medos. Mas aos olhos de todos, ainda parecia tudo bem.

Chegado o momento do parto, o bebê estava fora de posição. Muitas dores e agonia. Um procedimento muito complicado, que trouxe enorme sofrimento para a mãe e para o bebê.

Ela havia perdido muito sangue. Segundo relatos, ela precisou tomar 30 pontos no corte feito para retirar a criança, que foi puxado a fórceps, pela cabeça. O bebê demorou a reagir ao ser retirado, mas finalmente chorou. Um pequeno alívio após momentos de tensão extrema e risco de vida para ambos. Parto violento e traumatizante. Novamente esperava uma menina. Novamente veio um menino.

Já em casa aquele comportamento estranho da gestação começou a se exacerbar. Alguns relatam que, naquele instante, ela demonstrou uma certa decepção com o sexo da criança. Por conta de toda ansiedade na gestação e os traumas do parto, desenvolveu depressão pós-parto e em alguns momentos rejeitava a criança. Nos primeiros sintomas mais evidentes de sua doença de base, ainda não diagnosticada, permanecia o tempo todo deitada, dizendo que estava sendo operada por “Nossa Senhora”. Seu comportamento gradativamente foi mudando. Começou a se afastar das tarefas do dia a dia, não tinha vontade de sair de casa e tinha dificuldades em se relacionar com as pessoas. Mesmo aquelas com quem mantinha vínculos mais fortes até a segunda gestação. As alucinações começaram a se tornar mais frequentes… Começou a ter delírios, mania de perseguição e a pensar que o mundo inteiro estava contra ela. Afinal, qual seria a causa disso tudo?

Quando a situação tornou-se insustentável, o marido, com grandes dificuldades financeiras, conseguiu encontrar um psiquiatra (homem), que se interessou pelo caso e cobrava um preço simbólico pela consulta. Em sua cabeça, ela enxergava o terapeuta como seu inimigo e pouco contava sobre seu passado. Diagnosticada com dificuldade como esquizofrênica, começou a fazer uso de psicotrópicos e sedativos fortes, para tentar controlar a insônia que a assolava desde o parto traumatizante. Usava medicamentos para induzir ao sono, os mesmos utilizados em pacientes nos procedimentos pré-anestésicos em cirurgias. Mesmo doses pesadas desses medicamentos não eram suficientes para fazê-la dormir.

Por 21 anos, mesmo com a mudanças de  dosagem e estratégias medicamentosas, nada mudava aquele quadro, a não ser em curtíssimos períodos de aparente lucidez. Parecia um zumbi. Andava em casa de um lado para o outro, não conversava muito e não queria sair para lugar algum. Ia arrastada para as consultas psiquiátricas onde, com muita dificuldade, começou a relatar alguns casos de violência. Seus pais, segundo ela, batiam muito nela e em seus irmãos. Mas havia algo que ela não revelava a ninguém.

Passados esses anos, seu marido, aposentado, que cuidava de tudo, lavava roupa, passava, cozinhava, cuidava dos filhos e dela, limpava a casa, enfim, era o grande pilar daquela família, morreu vítima de um infarto fulminante. Foi encontrado pelo filho mais novo caído na cozinha. Ele, até o último minuto de vida,  cumpriu sua missão de cuidar e zelar por aquela família que amava acima de tudo. Antes de morrer, por volta das 5h30min da manhã, deixou o café da manhã pronto para todos. O último e derradeiro, que acabou não sendo consumido pela dor da perda. Naquele momento, pareceu que ela era a pessoa mais sensata daquela família. Não teve forças para ir ao enterro do marido, ficando em casa com o filho mais novo, cabendo ao mais velho a difícil tarefa da despedida final. Mas algumas semanas depois, decidiu deixar seus filhos para morar com as irmãs em outra cidade distante dali e procurar um novo psiquiatra, para tratar-se e retornar bem. 

Foram 6 anos de separação. Os filhos aprenderam a se virar sozinhos e ela encontrou um psiquiatra (homem) que, com alguma dificuldade e tempo de tratamento, começou a utilizar um medicamento novo. Este, após 2 anos, mudou sua vida! Não há nenhum indício de que ela tenha contado sobre a real origem de seu problema até então. Mas aquele ambiente, cercado de irmãs, certamente ajudou na terapia, que em conjunto com a revolucionária medicação, mudou o quadro dela, favorecendo a sua melhora. A partir de então, saía, se relacionava bem com as pessoas e até ajudou a cuidar da mãe que, diagnosticada com Alzheimer, teve seu quadro de saúde agravado com o passar do tempo. Era cuidada por ela e pelas irmãs até que morreu, anos depois.

Com saudade dos filhos, após a morte de sua mãe, retornou em definitivo para a cidade grande, onde encontrou seus filhos adultos e independentes. Viu com muita alegria e emoção o casamento do filho mais velho e finalmente ganhou a filha tão desejada, que não teve naturalmente: sua nora. Em seguida a transferência deles para outra cidade, por conta de compromissos profissionais, trouxe muitas saudades… Mas recebia periodicamente a visita do casal, apesar da distância que os separava. Morava com o filho mais novo, que tinha sua vida acadêmica e profissional, mas estava todos os dias com ela. Cuidavam-se um do outro.

Com o passar do tempo, aqueles sintomas do passado, em especial a mania de perseguição, começaram a se intensificar pouco a pouco. Veio a primeira e única neta. Teve a iniciativa de viajar sozinha, com liberação do médico, para outra cidade, no intuito de ajudar o casal que não tinha muitos amigos por lá. Um gesto de amor, muito bem-vindo! Gratidão!

Não ficou até o parto, retornando ao seu lar para aguardar com muita ansiedade o nascimento da primeira neta, ocorrido pouco tempo depois. Sim, mais uma menina na sua vida! A ansiedade que era grande, tornou-se ainda maior, para vê-la. Mas dessa vez, faltou coragem para a viagem e um medo inexplicável de morrer sem ver a neta, mais um indício de que a doença poderia estar se manifestando novamente. Finalmente conheceu sua netinha, com 3 meses de idade! Muita emoção e muito amor àquela criança linda!!! 

Meses depois, um susto: teve uma crise, parecia totalmente desorientada e fora de si… Não respondia às perguntas do filho mais novo. Apenas sentava, levantava, mexia nos objetos da casa. Levada ao hospital, ficou em observação. Teve que permanecer contida, mas demonstrava sinais claros de total desorientação. Encaminhada a uma clínica psiquiátrica, o diagnóstico de crise de abstinência, confirmado por ela própria. Achou que não precisava mais daqueles medicamentos e ficou alguns dias sem tomá-los, culminando na referida crise. Veio a primeira internação psiquiátrica. Os filhos não se conformaram com aquela situação e achavam o quadro dela incompatível com os dos demais pacientes lá internados. Retiraram-na da clínica, encaminhando-a ao psiquiatra para reposição da medicação. Porém, mesmo após algumas consultas, não houve melhora significativa no seu quadro. Logo, precisou ser internada em outra clínica psiquiátrica, onde inicialmente foi acompanhada por outro psiquiatra (também homem).

Foram meses de internações e tentativas de retorno para a casa, sem sucesso. As crises vinham fortes e dessa vez, acompanhada de algumas atitudes agressivas. Não machucou ninguém, mas novas internações foram necessárias para tentar reverter o quadro através de medicamentos. Foram várias estratégias tentadas, por vários médicos homens. Durante a internação, voltou a ter as mesmas alucinações que tinha logo após o parto. 

Foi quando veio a quarta mudança de psiquiatra e a primeira mulher a atendê-la. A empatia foi imediata. Enxergou nela a filha natural que não tinha em sua vida. Começou a falar de seu passado, coisas que nunca havia revelado a ninguém. Conversando com outras pessoas, ficou evidente que nem o marido falecido tivesse conhecimento de toda a história.

Enfim, a triste revelação, feita inicialmente à sua “filha” psiquiatra: quando criança, aproximadamente aos 8 anos de idade, sofreu abusos sexuais do próprio pai… E não foi só… Sua mãe, inconformada, castigou-a várias vezes, batendo em seu corpo com uma “corda de sete voltas” como ela própria relatou várias vezes. “Nossa vizinha gritava dizendo que minha mãe ia me matar”, dizia ela. Como se uma menina de 8 anos pudesse ser culpada por um ato tão bárbaro e desumano de um pai, se é que devemos chamá-lo assim… Profunda tristeza…

Ligando os fatos, muito provavelmente as irmãs mais velhas vieram para a cidade grande para fugir do monstro. Teriam sofrido alguma espécie de abuso também? Não se sabe… E sua ida para junto das irmãs aos 12 anos pode ter sido uma forma de proteção ou mesmo uma fuga de seu algoz… Em crises, revelou a história para os filhos e nora. Todos chocados com tudo e ainda mais, quando veio a confirmação da psiquiatra sobre a veracidade da tragédia…

Em resumo, seu diagnóstico de esquizofrenia paranoide foi fechado. A origem de tudo: os abusos e violência sofridos em sua infância. O gatilho: o parto violento tanto para mãe quanto para o filho mais novo.

Hoje ela vive relativamente estável, fazendo uso de vários medicamentos para controle, porém sem condições de ficar sozinha nem sequer por um minuto. Mora numa casa de repouso e passa os finais de semana com os filhos. Voltou a apresentar momentos de dificuldade de relacionamento, o que se justifica por tudo o que ela passou na mão de seu “pai”. Todos ao redor acabaram pagando uma parte da conta pela violência e pela estupidez de uma só pessoa, agravada por um parto traumatizante.

Ela pode ser uma fugitiva de seu passado ou de seu algoz. Pode ser uma esposa eternamente apaixonada pelo marido que se foi. Com certeza, mãe carinhosa de dois filhos, mesmo com a dificuldade imposta por sua doença. Avó dedicada de uma neta. Mas acima de tudo, um MULHER extraordinária, que sofreu muito, e que sofre até hoje com a memória de coisas terríveis. Mas não se entrega. Luta, faz questão de cuidar daqueles que é capaz de amar! E faz questão de estar sempre que possível ao lado deles!

Homenagem a uma frida, que no momento não pode se expressar, mas que gostaria que outras mulheres, que se identifiquem com a sua história, possam ter força e coragem para reagir e lutar contra a violência e os abusos a toda e qualquer mulher.

* Neste relato, pela primeira vez no Fala Frida, um homem assumiu o lugar de fala. Ele é o filho “dela”, desta mulher que sofreu várias formas de violência e que impactaram profundamente na maternagem que ela conseguiu oferecer a ele. Trata-se, além de violência contra mulher, da construção da masculinidade deste filho afetado por esta conjuntura de violência, trauma e doença.

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