Há pouco mais de um século a luta feminista visava, grosso modo, a conquista de um terreno material. As mulheres não eram reconhecidas como cidadãs, ou seja, não podiam votar, ter patrimônio ou uma profissão; sequer podiam decidir o destino de seus próprios filhos.

A batalha empreendida pelas sufragistas por meio do movimento Women’s Social and Political Union (WSPU) fundado em 1897 na Inglaterra, custou caro, mas rendeu frutos sólidos e duradouros, muito embora as distinções de classe e raça permanecessem afetando drasticamente o acesso a tais direitos.

A partir de então, ao redor do início do século XX, uma parcela da população feminina começa a ocupar os espaços públicos, fazendo-se notar na política, na ciência e na literatura. As mulheres passam a viajar, ganhar dinheiro e assumir posições de poder e comando. Diante de tal cenário, desavisados rapidamente formulam uma simples ideia: com tantas conquistas, do que as mulheres poderiam ainda reclamar?

Reclamar; no caso da pergunta acima suscita a ideia de queixa, lamento.

No entanto, reivindico o sentido de protesto, oposição, exigência.

Pois bem, diante de tal questionamento, sinto-me impelida a explicar sobretudo por que essa pessoa desavisada que questiona nossos protestos muitas vezes é uma mulher que desfila por aí tal qual um “gato sem rabo” sem ter ainda se dado conta.

Há cerca de um século, Virginia Woolf é solicitada a falar sobre o tema “as mulheres e a ficção” diante da Arts Society (Newnham College) e da ODTAA (Girton College). Era 1928 e as mulheres haviam recém conquistado o direito de ingressar em Oxford, privilégio não desfrutado por Virginia, mas pelo seu irmão Thoby que estudou em Cambridge. Décadas antes algumas universidades para mulheres tinham sido criadas, embora sem o mesmo estatuto que aquelas frequentadas por homens; cenário que só mudou, na Inglaterra, por volta de 1960.

Diante do tema requerido, Virginia propõe, depois de muito refletir e julgar impossível chegar a qualquer conclusão, explicitar como formulou a opinião de que “uma mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu, um espaço próprio, se quiser escrever ficção” (p. 12). É assim que ela conta, em Um teto todo seu (1928), a aventura que precede os dias de sua palestra. Através de uma ficção, fala acerca do que uma mulher enfrenta quando pretende escrever.

Virginia (ou a protagonista, que se confundem) encontra-se então sentada à beira de um rio a refletir. Em meio a promissores pensamentos, põe-se a caminhar pelo gramado quando é bruscamente interrompida por um homem (um bedel: funcionário de instituições de ensino superior) que sinalizava a necessidade de mudar seu rumo. Atônita, entendeu sem demora que deveria sair do gramado e seguir pelo cascalho, pois ali era “seu lugar”.

Ela segue perambulando pelos pátios da universidade até resolver entrar na biblioteca. Mal abriu a porta e foi, novamente, impedida de prosseguir por outro homem que indicava, com ar igualmente reprovador, que ali só era permitida a entrada de damas se acompanhadas de um estudante ou munidas de uma carta de apresentação. Enraivecida jurou jamais por os pés naquele lugar e seguiu caminhando até a hora do almoço. Mais tarde, enquanto comia, não pôde deixar de notar a generosa refeição saboreada com um bom vinho que era servida na universidade. Já satisfeita, olha para janela e, então, vê “um gato sem rabo”:

“a visão daquele animal abrupto e truncado caminhando calmamente pelo pátio, modificou […] a luz emocional para mim. Foi como se alguém tivesse deixado cair uma sombra. […]. Certamente, enquanto eu via o gato manx (gato sem cauda originário da ilha de Man, no Reino Unido) parar no meio do gramado, como se também questionasse o universo, algo parecia faltar, algo parecia diferente. Mas o que faltava, o que estava diferente? “ (p. 22).

Em seguida, Virginia lembra de um outro almoço, na verdade um jantar, oferecido num local não muito distante dali, mas significativamente desigual. Ela e uma amiga faziam uma refeição bastante simples em uma universidade para mulheres (na época existiam ainda universidades separadas por gênero). Depois de comerem, seguiram conversando e rememorando a árdua batalha empreendida por suas mães e avós para conseguir recursos a fim de fundar a primeira universidade para mulheres cerca de sessenta anos antes. tão diversa da história das outras universidades (as exclusivas para homens), já com séculos de tradição. Como poderiam se dar ao luxo de um jantar refinado ou de um dormitório minimamente confortável? Tudo era diferente.

Até muito pouco tempo atrás, o dinheiro estava concentrado nas mãos dos homens que detinham a exclusividade dos trabalhos remunerados e também o direito de dispor de qualquer ganho – herança – de suas esposas ou irmãs. De que serviria uma mulher ter algum recurso então? Enquanto o legado dos homens para seus filhos havia sido uma bela e rica universidade, qual foi o das mulheres? Qual seria, afinal, “os efeitos que a pobreza tem na mente” (p. 39)? E assim, “pensando na segurança e na prosperidade de um sexo, na pobreza e na desproteção do outro e nos efeitos da tradição e da falta de tradição sobre a mente de um escritor” (p. 39), é o momento de voltarmos ao “gato sem rabo”.

Pense num “gato sem rabo”. Na estranheza que ele exala. No meio de outros gatos, ele parece suspeito. Um tipo que não se pode confiar. Não se sabe como reagir a ele. Talvez ele não seja propriamente um “gato”. Pois bem, coloque no lugar do gato uma mulher e a situe no século XXI. Como se pode ver, o gato sem rabo já circula entre os outros gatos, mas quando ousa falar, precisa de argumentos consideravelmente mais contundentes. Quando exige a posse do próprio corpo, julgam-no imoral, pois certas vidas valem mais do que outras. Quando afirma que os filhos ou a casa são de igual responsabilidade para ambos os pais, consideram-no histérico. Digamos que esse pobre animal padece de falta de legitimidade. Em meio aos outros gatos ele ainda é inferior e incapaz. Claro que faz coisas, mas não tão bem. Decerto ele ainda vai precisar de mais ou menos um século para provar que a “falta de rabo” não é um defeito e por isso mesmo não pode ser definida como “falta”. A ausência de rabo não faz dele “menos gato”. Ele segue sendo um gato. Que importa se tem ou não rabo?

Imagem | twitter @umtetotodonosso

Através da imagem do “gato sem rabo”, Virginia nos ajuda a entender que o feminismo de hoje não é diferente daquele de outrora. Fala, ainda, de igualdade. Reivindica que os direitos de uma pessoa sejam independentes do gênero, e podemos acrescentar aqui, da classe e da raça. Ele é óbvio e simples. Ele não é contra isto ou aquilo. Ele quer que mulheres e homens sejam vistos antes de tudo como seres humanos. Mas é preciso entender, que em tempo algum, o ponto de partida foi igual para as mulheres. A se considerar esse recorte das universidades, são séculos de distância.

Enquanto as mulheres estavam em casa executando tarefas infindáveis e cuidando dos filhos, os homens estavam na rua gerando riqueza e produzindo conhecimento. E isso não mudou. Ao menos não tão radicalmente quanto necessário. O trabalho realizado dentro de casa segue sendo desvalorizado e pouco reconhecido em contraste com a supervalorização do trabalho realizado fora de casa; talvez em consequência disso, a divisão de tarefas domésticas [incluído aí os filhos] siga sendo absolutamente desigual. Portanto, décadas à frente, seguimos “desfalcadas de espaço, tempo e linguagem”, tal como afirma Noemi Jaffe no posfácio de Um teto todo seu (2014). Ou, seja, estamos, ainda, batalhando pelo mesmo tipo de legitimidade. Porque, na verdade, a falta dela está em tudo: no shortinho que não podemos vestir, na remuneração inferior, na carga mental da vida doméstica, na falta de direito à escolha pela interrupção da gravidez, no tempo de que não dispomos para estudar depois de uma dupla ou tripla jornada ou ainda quando não temos acesso à educação e à cultura por escassez de recursos.

Certamente os esforços empreendidos pelas mulheres e seus apoiadores ao longo dos séculos passados contribuíram para uma melhoria considerável da condição de vida da mulher, embora tais benefícios permaneçam amplamente inacessíveis à muitas delas. Além dos esforços de reparação tão necessários nos mais diversos níveis, precisamos criar espaços de expressão para as diversas vozes femininas que anseiam por contar suas histórias. Pois, inegavelmente, cada mulher vive cotidianamente e diferentemente inúmeras formas de opressão.

Assim, para além de um teto todo meu, hoje precisamos pensar em um teto todo nosso. E isso significa não só levar em conta as condições materiais da liberdade, mas também refletir acerca da cultura que sustenta o contexto social excludente e opressor que ainda vivemos. Pois uma situação de vulnerabilidade material somada à vulnerabilidade social conduz, invariavelmente, à vulnerabilidade pessoal. Se queremos superar a visão enviesada que temos do “gato sem rabo”, precisamos ir à fundo nos detalhes do dia a dia, o que quer dizer começar pela linguagem. Haverá um dia em que o “gato sem rabo” não existirá, pois ele será apenas um “gato”. Um gato entre outros. Um gato e ponto.


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