Por conta de um projeto muito especial que vou revelar em breve, decidi reler o livro Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva, de Silvia Federici. O livro foi publicado em 2019, mas é o resultado de praticamente 30 anos de pesquisas da filósofa italiana que há muito tempo vem atuando em diversos países do mundo como feminista anticapitalista. Sim, nesse texto vamos falar desse assunto tão proibido que é o capitalismo. Silvia é uma ferrenha defensora do pagamento de salário para as mulheres em troca do trabalho doméstico. Mas por que esse livro é tão impactante e importante para o movimento das mulheres?

Em primeiro lugar, porque ele joga luz sobre o fenômeno histórico da caça às bruxas, que até então tinha recebido muito pouca atenção dos historiadores – que são, em sua maioria, homens. Uma possível explicação, segundo a autora, é que a maior parte das condenadas por bruxaria eram camponesas, ou seja, mulheres pobres que não “importavam” muito nem naquela época nem nos dias de hoje.

E falar de campesinato já é uma boa chave para compreender o que Silvia tem para oferecer. Ela desenvolveu, a partir de muito estudo, uma tese totalmente nova sobre a caça às bruxas, que ela define como uma guerra contra as mulheres. E um dos pontos mais surpreendentes é que o extermínio de milhares de mulheres coincide com a colonização das Américas, com o cercamento de terras na Europa e com a transição do feudalismo para o capitalismo, pontos provavelmente nunca antes conectados. Explico.

Com a queda do Império Romano por volta do século V, se desenvolveu na Europa um sistema de servidão, com mais liberdade para os escravos de então possuírem pedaços de terra.

A partir de então, “as mulheres trabalhavam nos campos, além de criar os filhos, cozinhar, lavar, fiar e manter a horta; suas atividades domésticas não eram desvalorizadas e não supunham relações sociais diferentes das dos homens” (FEDERICI, 2019, p. 64). Elas podiam exercer várias profissões, como ferreiras, açougueiros, padeiras, caneleiras, chapeleiras, cervejeiras e comerciantes. No século XIV, elas podiam ser professoras, médicas, cirurgiãs e inclusive competiam com homens nas universidades que começavam a surgir.

Durante a Baixa Idade Média (séculos X-XV), ganharam força os movimentos heréticos, como reflexo da insatisfação de muitos grupos com os dogmas da Igreja Católica. Os hereges argumentavam, entre outras coisas, que “Cristo não possuía propriedades e que, se a Igreja queria recuperar seu poder espiritual, deveria desprender-se de todas as suas posses (FEDERICI, 2019, p. 72). Já a igreja acusava de herege qualquer um que discordasse dela ou demonstrasse insubordinação social ou política.

Para a história das mulheres, o importante é que elas possuíam uma elevada posição social dentro do movimento herético; eram consideradas iguais aos homens. Tinham os mesmos direitos que eles e desfrutavam de ampla mobilidade e vida social.

Talvez por isso, o clero acabou por expulsar as mulheres das liturgias e sacramentos da igreja e passou a fazer da sexualidade um objeto de vergonha. O desejo sexual que as mulheres despertavam nos homens era poderoso e, portanto, deveria ser exorcizado. Os padres eram aconselhados a evitar mulheres e o sexo.

Além disso, é preciso considerar que o sistema feudal estava em crise e em toda a Europa, “vastos movimentos sociais comunalistas e rebeliões contra o feudalismo haviam oferecido a promessa de uma nova sociedade construída sobre as bases da igualdade e da cooperação” (FEDERICI, 2019, p. 114). O sistema capitalista foi aos poucos tomando o lugar do feudalismo e uma de suas bases foi o processo de cercamento de terras, que pode ser compreendido como a privatização da terra por parte principalmente de lordes ingleses e ricos fazendeiros para expandir suas propriedades e eliminar o uso comum da terra.

As mulheres foram muito afetadas pelos cercamentos, já que a “função social das terras comunais era especialmente importante para [elas], que, tendo menos direitos sobre a terra e menos poder social, eram mais dependentes das terras comunais para a subsistência, a autonomia e a sociabilidade (FEDERICI, 2019, p. 138). Lindas festas de origem pagã como o benzimento dos campos durante a Primavera passaram a ser proibidas, assim como as danças e outros rituais de sociabilidade foram aniquilados.

O modelo antigo de economia de subsistência foi sendo gradualmente substituído por um regime monetário, em que “somente a produção para o mercado estava definida como atividade criadora de valor, enquanto a reprodução do trabalhador começou a ser considerada como algo sem valor do ponto de vista econômico e, inclusive, deixou de ser considerada um trabalho” (FEDERICI, 2019, p. 145). O problema, frida, é que quem fazia e faz esse trabalho reprodutor aí somos nós mulheres. Tudo começou a subir de preço, a classe trabalhadora empobreceu a valer e alguns poucos empresários acumularam fortunas (qualquer semelhança com o capitalismo atual não é mera coincidência). A dieta da galera nessa época era pão – a principal despesa de seu orçamento – e só.

Somado a isso, nos séculos XVI e XVII, a Europa estava vivendo uma grande crise populacional, causada por pragas que arrasavam cidades inteiras e grandes fomes. A Alemanha, por exemplo, perdeu um terço de seus habitantes no início dos anos 1600. Nesta época, a colonização do chamado Novo Mundo já estava de vento em popa e a chegada dos europeus ao continente americano causou a morte de aproximadamente 95% da população nativa ou cerca 75 milhões de pessoas. Só no Brasil, estima-se que 16 milhões de indígenas morreram. Tava faltando gente.

O crescimento populacional passou a ser assunto de Estado e a crença de que uma grande população era sinônimo de riqueza passou a imperar. Contagens demográficas começaram a acontecer e se estamos falando de mais bebês, estamos falando de mulheres. Foi aí que nos ferramos pra valer. A ideia de “família” como instituição chave para esse novo projeto de nação começou a fazer muito sentido.

E eis que as mulheres passaram a ser consideradas, nas palavras da autora, “escravas da procriação”. Segundo Federici (2019, p. 178) “enquanto na Idade Média elas podiam usar métodos contraceptivos e haviam exercido um controle indiscutível sobre o parto, a partir de agora seus úteros se transformaram em território político, controlados pelos homens e pelo Estado: a procriação foi colocada diretamente a serviço da acumulação capitalista”.

E mais: todo o trabalho feminino passou a ser visto como “tarefa doméstica” ou não trabalho, parecia um recurso natural disponível para todos como o ar que respiramos. Frida, atenção: esse é um aspecto fundamental que sustenta o sistema capitalista até hoje. Lembra que a Silvia sempre defendeu salário para o trabalho doméstico?

Essa foi uma derrota histórica para as mulheres que, com o passar dos anos, foram perdendo mais e mais os direitos que possuíam. Ao longo dos séculos XVI e XVII, elas passaram a não poder mais realizar atividades econômicas por conta própria, fazer contratos ou representar a si mesmas nos tribunais. Eram consideradas “imbecis” para o Estado.

Na cultura e literatura, eram depreciadas, tratados com hostilidade e comparadas aos “índios selvagens”, que eram tipo a ralé da sociedade da época. O ponto é que “a demonização dos povos indígenas americanos serviu para justificar sua escravização e o saque de seus recursos. Na Europa, o ataque contra as mulheres justificou a apropriação de seu trabalho pelos homens e a criminalização de seu controle sobre a reprodução” (FEDERICI, 2019, p. 203).

Nenhuma das táticas teria obtido êxito, segundo a autora, se não tivessem sido sustentadas por campanhas de terror. No caso das mulheres europeias, esse terrorismo ficou conhecido como caça às bruxas. Esse é o pano de fundo.

Acesse aqui a segunda parte desta história.

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