No primeiro texto (leia qui), falamos sobre as condições sociais, econômicas, religiosas e políticas que possibilitaram que o genocídio contra as mulheres comumente conhecido como caça às bruxas fosse possível. Um ponto que vale a pena ser dito é que por muito tempo ninguém deu muita bola para isso. Ah, é só um monte de mulheres barraqueiras e indesejáveis sendo queimadas em fogueiras ao redor do mundo, pra que se incomodar? Foi o movimento feminista que nas últimas décadas passou a questionar o que se sabia até então sobre essa parte da história, muito porque as feministas se identificavam com as tais bruxas queimadas.

Elas “reconheceram rapidamente que centenas de milhares de mulheres não poderiam ter sido massacradas e submetidas às torturas mais cruéis se não tivessem proposto um desafio à estrutura de poder. Também se deram conta de que essa guerra contra as mulheres, que se manteve durante um período de pelo menos dois séculos, constituiu um ponto decisivo na história das mulheres da Europa, […] como um fenômeno ao qual devemos retornar de forma reiterada se quisermos compreender a misoginia que ainda caracteriza a prática institucional e as relações entre homens e mulheres” (FEDERICI, 2019, p. 292).

Em outras palavras, “como dar conta do fato de que, durante mais de dois séculos, em distintos países europeus, centenas de milhares de mulheres tenham sido julgadas, torturadas, queimadas vivas ou enforcadas, acusadas de terem vendido seu corpo e sua alma ao demônio e, por meios mágicos, assassinado inúmeras crianças, sugado seu sangue, fabricado poções com sua carne, causado a morte de seus vizinhos, destruído gado e cultivos, provocado tempestades e realizado muitas outras abominações? (FEDERICI, 2019, p. 304).

Na metade do século XV, mais ou menos no fim da Idade Média e início daquilo que conhecemos como Idade Moderna, quando estavam em curso diversas revoltas populares e epidemias é que ocorreram os primeiros julgamentos de bruxas. A época coincide com o desenvolvimento da doutrina da bruxaria, quando a feitiçaria passou a ser considerada uma “forma de heresia e [um] crime máximo contra Deus, contra a Natureza e contra o Estado” (FEDERICI, 2019, p. 296).

As bruxas eram aquelas mulheres que se opunham aos cercamentos dos campos de que falamos no primeiro texto, à difusão do sistema capitalista e que tinham poder sobre o próprio corpo, sua reprodução e capacidade de curar a si e aos outros. A caça às bruxas foi um ataque à resistência que elas ofereciam a essa nova sociedade que se formava, bem como um instrumento de uma nova ordem patriarcal, muito mais repressora do que provavelmente qualquer outro momento da história.

As acusações tratavam de acontecimentos de décadas antes, não requeriam nenhum tipo de comprovação e má reputação já significava culpa. A maioria das acusadas eram mulheres pobres e a maioria dos acusadores eram homens de classes superiores, às vezes seus senhores ou empregadores, muitas vezes ligados ao poder local.

Nas palavras de Federici (2019, p. 314) “embora a caça às bruxas estivesse dirigida a uma ampla variedade de práticas femininas, foi principalmente devido a essas capacidades – como feiticeiras, curandeiras, encantadoras ou adivinhas – que as mulheres foram perseguidas, pois, ao recorrerem ao poder da magia, debilitavam o poder das autoridades e do Estado”.

As mulheres da época também planejavam e dirigiam revoltas sociais, já que muitos homens foram massacrados ou encarcerados pelo Estado por conta disso. Uma das acusações mais famosas às bruxas era que elas frequentavam os sabás ou reuniões noturnas. “A revolta de classe, somada à transgressão sexual, era um elemento central nas descrições do sabá, retratado como uma monstruosa orgia sexual e como uma reunião política subversiva, que culminava com a descrição dos crimes que os participantes haviam cometido e com o diabo dando instruções às bruxas para se rebelarem contra seus senhores” (FEDERICI, 2019, p. 318).

A perseguição das bruxas tinha semelhança com a dos hereges, porém a bruxaria era considerada um crime essencialmente feminino. E somente nas acusações de bruxaria é que constavam frequentemente a perversão sexual e infanticídio, acompanhadas pela condenação de práticas contraceptivas.

Para Federici (2019, p. 326) “parece plausível que a caça às bruxas tenha sido, pelo menos em parte, uma tentativa de criminalizar o controle de natalidade e de colocar o corpo feminino – o útero – a serviço do aumento da população e da acumulação da força de trabalho. Essa é uma hipótese; o que podemos afirmar com certeza é que a caça às bruxas foi promovida por uma classe política que estava preocupada com a diminuição da população, e motivada pela convicção de que uma população numerosa constitui a riqueza de uma nação”.

Os métodos que as mulheres utilizavam para controlar a concepção foram considerados diabólicos. As bruxas eram, portanto, as mulheres que evitavam a maternidade, as parteiras, as curandeiras, as mendigas que maldiziam o vizinho que não as ajudava, as prostitutas, as adúlteras, as mulheres que vivenciavam sua sexualidade fora do casamento ou da procriação. Eram as mulheres vigorosas e agressivas como os homens, que vestiam calças e lutavam pelo que queriam, que viviam uma vida sob seus termos. Pensa na mulher selvagem que tanto debatemos hoje em dia? Ela seria a própria bruxa queimada na fogueira 350 anos atrás. As execuções das bruxas eram eventos públicos que todos deviam presenciar, especialmente as filhas das mulheres condenadas.

De acordo com Federici (2019, p. 334) “a caça às bruxas foi […] uma guerra contra as mulheres; foi uma tentativa coordenada de degradá-las, de demonizá-las e de destruir seu poder social. Ao mesmo tempo, foi precisamente nas câmaras de tortura e nas fogueiras onde se formaram os ideais burgueses de feminilidade e domesticidade”.

O ápice dessa nova ordem social foi o ideal de maternidade do início do século XX, ao qual estamos tão familiarizadas nos dias de hoje. Como assim você não ama ser mãe dessas coisinhas fofas? Como assim você quer dividir as tarefas? Como assim você quer ser reconhecida ou remunerada pelo trabalho que você faz dentro de casa, todos os dias, sem férias e sem hora pra acabar?

Outro grande problema dessa história toda é que os séculos de terror plantaram nos homens as sementes de uma profunda alienação psicológica com relação a nós mulheres. Uma mulher sexualmente ativa era um perigo para a sociedade, já que se acreditava que ela minava nos homens seu senso de responsabilidade, sua capacidade de autocontrole e de trabalho – algo cada vez mais valorizado.

“A caça às bruxas não só condenou a sexualidade feminina como fonte de todo o mal, mas também representou o principal veículo para levar a cabo uma ampla reestruturação da vida sexual, que, ajustada à nova disciplina capitalista do trabalho, criminalizava qualquer atividade sexual que ameaçasse a procriação”(FEDERICI, 2019, p. 349). A homossexualidade é um exemplo disso. Amplamente aceita na Europa, durante a perseguição das bruxas, tornou-se tabu, assim como o sexo entre pessoas jovens e velhas, a sodomia e qualquer forma de sexualidade que não visasse à procriação.

Se, durante a Idade Média, a bruxa era considerada uma figura positiva, que estava a serviço da comunidade, com a caça às bruxas esta passou a ser rejeitada e demonizada. O quanto tudo isso diz sobre a situação das mulheres atualmente? Infelizmente, muito.

Atualmente a guerra contra as mulheres tomou outras formas, como a violência psicológica, patrimonial, física, social e sexual a que assistimos todos os dias. Os ideias de beleza, domesticidade e maternidade ainda nos oprimem e nossos corpos continuam sendo instrumentos para colocar novos bebês no mundo.

E ai de quem fugir da maternidade! Vai ter que responder a um milhão de perguntas sobre o porquê da decisão. Mulheres ainda ganham menos do que os homens, ocupam profissões ligadas ao cuidado e participam pouco das decisões que definem os rumos do mundo. Mulheres negras ganham menos, são marginalizadas e sofrem ainda mais violências do que mulheres brancas e estamos longe de construir um movimento global de mulheres.

Mas há luz no fim do túnel. A começar pelo resgate das pesquisas sobre a história das mulheres, como esse livro riquíssimo de Silvia Federici. Estamos despertando.

Nós mulheres estamos reaprendendo a confiar umas nas outras e a compreender a potência da nossa união. Assistimos a um renascimento da profissão de parteiras e mulheres estão tomando as rédeas de seus partos. Mais e mais mulheres estão fazendo valer suas vontades, saindo de relacionamentos abusivos e vivenciando sua sexualidade como bem entendem.

Estamos reaprendendo a usar as ervas para nossa cura, a nos conectarmos com a força da natureza para ficarmos em paz e dali tirar forças para mudar o mundo. Estamos criando as crianças de um jeito diferente. Olhamos para elas, arranjamos tempo para ouvir o que elas têm a dizer. Estamos lembrando de honrar essas muitas mulheres que morreram por seus ideias e por um sistema mega injusto. Há muito o que fazer, frida. Para vivermos em um mundo seguro para as mulheres e verdadeiramente igualitário, é preciso arregaçar as mangas. Mas antes disso, precisamos (re)conhecer nossa história e por que chegamos aonde chegamos. Só assim teremos a chance de criar um futuro diferente.

Se quiser conversar comigo sobre esse livro tão maravilhoso, vem pra live no dia 28 de outubro às 20h no Instagram do @fala.frida.

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