Era uma festinha de aniversário. Estávamos eu e minhas irmãs todas arrumadinhas, como minha mãe gostava de nos deixar, brincando junto às outras crianças na garagem do prédio. Minha irmã caçula brincava no pátio, descalça, descabelada, e corria. Já eu, só olhava, com aquele olhar tímido e o semblante sério que marca todas as minhas fotografias de infância. Até que, finalmente, resolvi correr também. Imediatamente, veio uma dura reprimenda do meu pai, ecoando sua voz grave por todo aquele recinto: “Saia já daí, cuidado com a sua roupa!”.  E eu, imediatamente, parei.

Essa história é, na realidade, uma espécie de resumo da minha vida adulta. Até hoje carrego em mim aquela menina engomadinha, que observava os outros usufruírem da sua liberdade, correndo, brincando e se divertindo, e que guardava ali um desejo ardente de se juntar a eles, de ser igual.  Essa é a história da menina que nunca se permitiu correr, brincar e se divertir por medo. Medo de cair. Medo de se machucar. Medo de se desarrumar. Mas, sobretudo, por medo de desagradar o pai. E é aí que começa o texto de hoje.

Tenho 34 anos e uma série de desejos ardentes. O maior deles é o desejo de liberdade, de ser quem eu sou sem reprimendas, de exercer meu arbítrio, de explorar de forma tranquila e natural a minha sexualidade, de rir, brincar e me divertir com a vida. Sou potência. Mas quase não sou ato. Estou presa no hiato esperando o devir transformador. E o que me segura entre ser e o dever ser, é a voz ressonante do meu pai me dizendo: não corra, não brinque, isso é errado.

Minhas relações com os homens sempre foram conturbadas. Sempre que alguém se interessava por mim e eu me interessava por ele, era como se alguma coisa me dissesse: você não é boa o suficiente. Não pode. E, foi assim que, ao longo desses anos, eu nunca me senti merecedora. Sempre senti que faltava alguma coisa. Nunca me senti bonita, inteligente ou interessante o suficiente para alguém. E tudo isso sempre foi reforçado pela necessidade – a e por mim mesma imposta – de agradar o outro. Em todos os meus relacionamentos, fui eu, sempre, a figura submissa, que não podia desagradar, que não podia falhar, encobrindo sempre meu próprio desejo em tentativas de satisfazer o próximo.

Parei pra pensar de onde isso vem. E, assim, parei na história da menina engomadinha. Comecei a analisar de forma mais profunda a minha própria relação com o meu pai. Meu pai sempre nos amou – a mim e às minhas irmãs. Disso nunca tive dúvidas. Mas ele também sempre foi uma pessoa muito difícil. Por anos o vi (mesmo que isso fosse visto como natural, àquela época, pra mim), inferiorizar a minha mãe. Nunca o vi elogiá-la por sua beleza (minha mãe tem lindos olhos azuis), reconhecer sua inteligência ou agradecer por sua força. Minha mãe cuidou de nós, da casa e amputou outros sonhos para viver a família. E, também, para ser o que meu pai desejava que ela fosse.

Cresci, portanto, vendo aquela única e primeira referência masculina sendo reverenciada como um deus, cujas vontades todas deveriam ser satisfeitas. Quanto à minha mãe, suas falhas eram imediatamente repreendidas e, seu corpo, perscrutado. “Olha lá como a sua mãe tá gordinha”, em tom de chacota. “Olha a sua mãe ali se divertindo, que ridículo”. “Sua mãe não tem noção”. “Não seja burra, fulana”. E o silêncio, a parede, quando ela colocava seus sentimentos e era hora de discutir alguma coisa mais séria. Já a vi sair do quarto dos dois chorando, humilhada. Mas nunca quis saber a que aquele choro se referia.

Agora, permitam uma pausa, pois acabo de ter uma revelação. Esse escrito era para ser sobre mim – sobre mim e meu pai, sobre como ele nunca me escutou, nunca me observou de verdade e sobre como meu perfeccionismo e a inibição do meu desejo vêm da vontade de agradá-lo e, assim, ser vista por ele. Mas, vejam só, no fluir das palavras, ele acabou se tornando sobre a minha mãe. Eis que no meio da escrita – que foi realizada sem planejamento, apenas como uma catarse após uma difícil sessão de análise – fui acometida por uma descoberta e me peguei a chorar. Agora, só agora, com lágrimas nos olhos e um choro sentido, eu me dei conta.

E, agora, eu só consigo gritar: MÃE, ME DESCULPA.  Não foi até agora que eu entendi o quanto você já sofreu, o quanto já se sentiu diminuída, o quanto não se sentiu suficiente. Por todas as vezes que debochei da sua sensibilidade, que me irritei com as suas tentativas de liberdade (você pode dançar numa festa junto com os “jovens”, mãe, não tem problema, você pode se divertir), que detestei a sua insegurança. Me desculpe por todas as vezes em que não vi que você sofria. Por todos os momentos em que fui o meu pai. Por não entender que eu sou você e que somos vítimas da mesma coisa. Por não ter empatia com a sua dor.

Mãe, você é mulher, assim como eu. E se tem uma coisa que o feminismo ensinou pra mim, é que juntas somos mais fortes. Me desculpe por todas as vezes em que reproduzi o machismo. Me perdoa, mãe. Me perdoa. Somos ambas meninas engomadinhas.

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