Uma feminista é qualquer mulher que diz a verdade sobre sua vida

 Há quase um século a questão feminina já aparecia em toda a sua clareza nas palavras da escritora inglesa Virginia Woolf (1882-1941). Seria surpreendente se não fosse inquietante. Era o ano de 1931 e Virginia já havia consolidado sua carreira literária. Ela então aceita o convite da Sociedade Nacional de Auxílio às Mulheres para ler um texto que havia escrito intitulado Profissões para mulheres.

Virginia começa dizendo que a profissão de escritora não oferece muitas experiências e que quando começou a se dedicar à literatura não havia maiores obstáculos para as mulheres. Era uma atividade “respeitável e inofensiva”, pois não custava praticamente nada e não “perturbava a paz do lar”. Bastavam umas folhas de papel, uma caneta, mesa e cadeira. Sua própria história é bastante simples: “imaginem uma moça num quarto, com uma caneta na mão”. Depois de escrever algumas coisas, colocou as folhas em um envelope e enviou pelo correio. Foi assim que virou jornalista e passou a receber por isso, um dia “gloriosíssimo”. Mas, ao invés de comprar pão e manteiga ou pagar o aluguel, comprou um gato; portanto, considera desconhecer “as lutas e dificuldades da vida de uma mulher profissional”.

Pensava que “escrever artigos e comprar gatos persas” não era difícil. A questão era que cada texto devia versar sobre alguma coisa, precisava ter um conteúdo. E foi então que descobriu que para escrever teria de “combater um certo fantasma”. Esse fantasma era uma mulher à qual deu o nome de um célebre poema do escritor inglês Coventry Patmore (1823-1896), O Anjo do Lar:

   Era ela que costumava aparecer entre mim e o papel enquanto eu fazia as resenhas. Era ela que me incomodava, tomava meu tempo e me atormentava tanto que no fim matei essa mulher. […] Ela era extremamente simpática. Imensamente encantadora. Totalmente altruísta. Excelente nas difíceis artes do convívio familiar. Sacrificava-se todos os dias. […] em suma, seu feitio era nunca ter opinião ou vontade própria e preferia sempre concordar com as opiniões e vontades dos outros. E acima de tudo – nem preciso dizer – ela era pura. Sua pureza era tida como sua maior beleza […]. E quando fui escrever topei com ela já nas primeiras palavras. […] Ele fez que ia guiar a minha caneta. […] Fui para cima dela e agarrei-a pela garganta. […] Se eu não a matasse, ela é que me mataria. Arrancaria o coração da minha escrita. Pois, na hora em que pus a caneta no papel, percebi que não dá pra fazer nem mesmo escrever uma resenha sem ter opinião própria, sem dizer o que a gente pensa ser verdade nas relações humanas, na moral, no sexo. E, segundo o Anjo do Lar, as mulheres não podem tratar de nenhuma dessas questões com liberdade e franqueza; se querem se dar bem, elas precisam agradar, precisam conciliar, precisam – falando sem rodeios – mentir.

Para Virginia, a sua condição para escrever tinha a ver com uma herança que havia recebido e que lhe garantia uma renda anual suficiente para viver sem a necessidade de outro rendimento, seja de um homem, seja de um trabalho. Ela dizia que com isso não precisava “só de charme para viver” e podia dedicar-se à escrita de modo livre e honesto. Então, liberada da “falsidade”, ela “só tinha de ser ela mesma”. Mas o que é “ser ela mesma”? O que é “ser uma mulher”? Não sabia e tampouco acreditava que qualquer mulher soubesse. Mas esperava que pudéssemos entender um pouco mais na medida em que as mulheres se expressassem nas diferentes “artes e profissões abertas às capacidades humanas”. E por isso as experiências seriam tão importantes. Era preciso conhecer esse universo.

Continuando, Virginia conta outra situação que viveu enquanto romancista. Desta vez ela descreve como funciona sua imaginação e pensa ser o mesmo para homens e mulheres. No entanto, em meio a um desses processos criativos, ela experimenta uma espécie de tumulto, como se sua imaginação tivesse “colidido em uma coisa dura”. Ela então desperta do “transe” e se vê aflita e angustiada. Ela pensou em algo, algo “sobre o corpo”, sobre “as paixões”, algo que seria “inadequado para uma mulher dizer” e que seria, portanto, chocante para o mundo masculino. Assim, “foi a consciência do que diriam os homens sobre uma mulher que fala de suas paixões que a despertou do estado de inconsciência como artista”. E é assim porque o rigor social ao qual a mulher escritora está submetida em nada se parece à liberdade que o homem escritor desfruta. De fora, nada parece mais simples e mais igual do que escrever livros. Contudo, de dentro, os obstáculos são imensos. Os fantasmas a combater são inúmeros. A questão do corpo, por exemplo, está longe de estar resolvida. Na verdade, parece mesmo distante o tempo em que uma mulher poderá sentar e escrever sem precisar quebrar paradigmas e vencer preconceitos. E se é assim na profissão de escritora – “a mais livre das profissões para mulheres” – imaginem nas outras tantas que começamos a exercer. Mas pela primeira vez na história podemos nos fazer estas perguntas e também decidir acerca das respostas.

Décadas a frente, aqui estamos. E caberia sondar em que medida as nossas questões diferem daquelas de outrora. O que me parece necessário é a construção e a consolidação de espaços de fala e de escuta para as mulheres, seja no trabalho, seja dentro de casa, seja onde estiverem. Pois é na exata medida em que se expressa que cada mulher compreende o que pensa e o que sente, que uma mulher cria a sua própria opinião. E não há engano, hoje ainda os fantasmas teimam em fazer sombra e os Anjos do Lar estão estranhamente por toda parte.

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