A leitura de Virginia Woolf (1882-1941) tornou-se, pouco a pouco, uma necessidade para mim. Ela é, hoje, uma interlocutora fundamental.  Sinto-me próxima, íntima. Duas mulheres que falam precisamente a mesma língua. Vez por outra, ouço acerca da grandiosidade de sua obra e me espanto com a discrepância do meu sentimento em relação a ela.

Seria ainda um mistério que o seu feminismo do início do século XX fosse tão próximo do meu neste início do século XXI. Mas em verdade me pergunto onde residiria tamanha afinidade de temas e tons. Entre idas e vindas, volto sempre a dialogar com ela. Releio e aprofundo uma ideia. Questiono e abraço tal pensamento como uma ferramenta. Assim é com “a alegoria do espelho”, imagem que Virginia desenvolve em seu ensaio intitulado Um teto todo seu de 1928.

Em meio às pesquisas que a protagonista de Um teto todo seu realiza para entender e, então, falar acerca do tema “as mulheres e a ficção”, ela encontra um número considerável de livros dissertando sobre a inferioridade – física, moral, intelectual, algo mais? – das mulheres. Ela encontra, portanto, uma porção de livros escritos por homens sobre as mulheres.  Na época, a quantidade de livros publicados por mulheres era, tal qual hoje, bastante inferior em relação à média masculina.

Virginia explica que diante de tal cenário, ela (que poderia ser a protagonista ou própria Virginia, que se confundem ao longo de todo o ensaio) sente raiva. E esse seu sentimento seria facilmente compreensível dadas as circunstâncias. No entanto, percebe que o autor do livro A inferioridade mental, moral e física do sexo feminino, que ela passa a chamar de “o professor”, também parecia sentir raiva, mas “uma raiva complexa e disfarçada” (p. 50). Do que ou de quem ele estaria com raiva, afinal?

Ao sair para o almoço, a protagonista (que pode ter qualquer nome, segundo Virginia) se depara com um jornal vespertino sob a mesa.  Ao começar a ler se dá conta de que “mesmo o visitante mais transitório deste planeta” (p. 51) notaria, a partir das diferentes manchetes, que “a Inglaterra está sob as regras de um patriarcado” (p. 52), ou seja, o poder, o dinheiro e a influência são deles, dos homens, do professor que falamos acima:  “com exceção do nevoeiro, ele(s) parece(m) controlar tudo” (p. 52) e apesar disso, eles estão com raiva. Como poderiam? Seria tal raiva um “espírito auxiliar” do poder?

Virginia conclui: talvez o professor, ao falar com tanta eloquência acerca da inferioridade “geral” das mulheres estivesse na verdade preocupado com sua própria superioridade. E explica:

“a vida para ambos os sexos […] é árdua, difícil, uma luta perpétua. Requer coragem e força gigantescas. […] requer confiança em si mesmo. Sem autoconfiança somos como bebês no berço. E de que modo podemos adquirir essa qualidade imponderável, que também é tão inestimável, o mais rápido possível? Pensando que as outras pessoas são inferiores. Sentindo que temos uma superioridade inata”

Eis aí o fundamento da estrutura patriarcal: seu poder está confortavelmente assentado na crença de que a outra metade da humanidade (as mulheres) é naturalmente inferior. Assim, quando um homem protesta diante de uma mulher com opinião própria não é só sua “vaidade ferida” que reclama, mas também a sua convicção em si mesmo. Uma mulher que fala arrisca golpear a autoconfiança do homem. É assim que “as mulheres têm servido há séculos como espelhos, com poderes mágicos […] de refletir a figura do homem com o dobro do tamanho natural” (p. 54). Então, quando uma mulher critica um homem, é esse embate diante do espelho que ele enfrenta, pois “se ela resolver falar a verdade, a figura refletida no espelho encolherá”.

Diante disso, “a alegoria” criada por Virginia parece sugerir que cada pessoa arranje um espelho a fim de olhar para si mesma e assim acessar seus medos, raivas e quaisquer outros sentimentos. E só depois desse enfrentamento, que nada mais é do que a busca genuína de conhecer um pouco mais de si, seria, então, possível voltar-se para o outro. Pois na exata medida em que cultivo a minha autoconfiança menos receio eu sinto em relação ao julgamento alheio. É bastante simples de dizer, mas consideravelmente árduo de realizar.

Portanto, quando um gênero concebe sua história totalmente ancorada na inferioridade do outro, de fato, cabe questioná-la. Não à toa, a pauta do feminismo ao longo dos séculos tem sido rigorosamente a mesma: igualdade em toda e qualquer esfera da vida social e privada. No limite, o óbvio: a igualdade não é algo temível a priori, mas torna-se uma ameaça quando o lugar de privilégio passa a ser contestado por aquele que a priori não tem voz. Talvez se possa estender a reflexão ao dilema da raça, da classe e da etnia, uma vez que o branco em relação ao negro, o rico em relação ao pobre, o colonizador em relação ao colonizado, baseiam amplamente seu poder na concreta vulnerabilidade das pessoas então consideradas como “outros”.

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