Recentemente, li a frase: “nós somos as netas das bruxas que vocês não conseguiram queimar”. Mexeu muito comigo. Algum tempo depois, ouvi falar de um livro que recontava a história da caça às bruxas, só que com um viés feminista. Corri pra comprar Calibã e a bruxa, de Silvia Federici. A leitura é de embrulhar o estômago (veja aqui mais uma análise). Difícil em alguns momentos, pois traz um panorama histórico bem denso mas importante pra situar os acontecimentos (a obra é fruto de 30 anos de pesquisa!). Mas sabe aquele livro que você lê e vai concluindo: “ah, então é por isso que nós fazemos as coisas desse modo hoje em dia”? É desses. 

O primeiro ponto que vale destacar é que somente com o movimento feminista é que o fenômeno histórico “caça às bruxas” saiu da clandestinidade e passou a ser estudado e entendido a partir de novas lentes. Nas últimas décadas, algumas historiadoras se deram conta de que milhares de mulheres não poderiam ter sido massacradas, torturadas, queimadas vivas ou enforcadas durante cerca de dois séculos se não representassem um grande risco para a estrutura de poder da época. Também é significativo que o que Silvia chamou de “guerra contra as mulheres” tenha acontecido ao mesmo tempo em que os europeus colonizavam e exterminavam populações inteiras nas Américas. 

Não há estudos conclusivos, mas estima-se que cerca de 200 mil mulheres foram acusadas de bruxaria, sendo que pelo menos metade delas foi assassinada, de acordo com Anne Barstow, uma das fontes consultadas pela autora da obra. A grande inovação trazida por Silvia foi situar a caça às bruxas em um período decisivo para a transição para o capitalismo e formação do proletariado moderno. Nas palavras dela:

A caça às bruxas aprofundou a divisão entre mulheres e homens, inculcou nos homens o medo do poder das mulheres e destruiu um universo de práticas, crenças e sujeitos sociais cuja existência era incompatível com a disciplina do trabalho capitalista. 

Os primeiros julgamentos de bruxas ocorreram no sul da França, Alemanha, Suíça e Itália, na metade do século XV, quando a feitiçaria foi declarada uma heresia e um crime contra Deus, a natureza e o Estado. O ápice das execuções se deu entre 1580 e 1630, “numa época em que as relações feudais já estavam dando lugar às instituições econômicas e políticas típicas do capitalismo mercantil”. 

Silvia nos mostra que a caça às bruxas foi um acontecimento político de grande importância, apoiado por juízes, advogados, estadistas, cientistas, teólogos e filósofos como Hobbes, Bacon, Kepler, Galileu, Descartes, Shakespeare. Vale lembrar que os interrogatórios e as torturas às quais foram submetidas as bruxas foram a base para o método da Nova Ciência desenvolvido por Francis Bacon. Além disso, a “Igreja Católica forneceu o arcabouço metafísico e ideológico para a caça às bruxas e estimulou sua perseguição”. Silvia continua:

Se considerarmos o contexto histórico no qual se produziu a caça às bruxas, o gênero e a classe das acusadas, bem como os efeitos da perseguição, podemos concluir que a caça às bruxas na Europa foi um ataque à resistência que as mulheres apresentaram contra a difusão das relações capitalistas e contra o poder que obtiveram em virtude de sua sexualidade, de seu controle sobre a reprodução e de sua capacidade de cura. 

Por trás desse fenômeno, estava a expansão do capitalismo rural, que levou ao aumento da pobreza, fome e deslocamentos sociais. O poder foi transferido para uma nova classe, que temia as formas de vida comunais típicas da era pré-capitalista. “A caça às bruxas foi também instrumento da construção de uma nova ordem patriarcal em que os corpos das mulheres, seu trabalho e seus poderes sexuais e reprodutivos foram colocados sob o controle do Estado e transformados em recursos econômicos”.

As acusações a que tais mulheres eram submetidas eram, muitas vezes obscuras e teriam ocorrido décadas antes. Algo parecido com as acusações de terrorismo nos dias de hoje. A maioria das acusadas eram camponesas pobres e grande parte dos acusadores eram membros abastados das estruturas locais de poder, que tinham laços com o Estado. Na Inglaterra, as bruxas eram normalmente mulheres velhas que mendigavam por pedaços de comida e viviam de assistência pública.

Silvia explica que “quanto ao crimes diabólicos das bruxas, eles não nos parecem mais que a luta de classes desenvolvida na escala do vilarejo: o ‘mau-olhado’, a maldição do mendigo a quem se negou a esmola, a inadimplência do pagamento do aluguel, a demanda por assistência pública”. Os encontros atuais de mulheres discutindo sexualidade, sagrado feminino ou obras como Mulheres que correm com os lobos seriam facilmente descritos como bruxaria. A magia e toda a gama de curas com base em ervas eram vistas como obstáculos para a racionalização do processo de trabalho. “O mundo precisava ser ‘desencantado’ para ser dominado”. Ou seja,

foi principalmente devido às capacidades como feiticeiras, curandeiras, encantadoras ou adivinhas que as mulheres foram perseguidas, pois, ao recorrerem ao poder da magia, debilitavam o poder do Estado, dando confiança aos pobres em sua capacidade para manipular o ambiente natural e social e, possivelmente, para subverter a ordem constituída. 

Outras acusações incluíam perversão sexual e infanticídio, que vinham acompanhadas de uma demonização das práticas contraceptivas, amplamente dominadas pelas mulheres. A caça às bruxas também pode ser entendida como uma tentativa de criminalizar o controle da natalidade e de colocar o corpo feminino a serviço do aumento da população e da acumulação da força de trabalho. Em outras palavras, a caça às bruxas expropriou os corpos das mulheres, que passaram a funcionar como máquinas para produzir mão de obra. Não é coincidência que este período coincide com o início das medições demográficas e com a emergência de uma nova forma de pensar: a classe política estava preocupada com a diminuição da natalidade e convicta de que uma população numerosa era a maior riqueza de uma nação. 

A bruxa também era aquela mulher que vivenciava sua sexualidade fora dos padrões do casamento e da procriação. Era também a mulher libertina, adúltera, rebelde, tão agressiva e vigorosa quanto um homem. Má reputação já era prova de culpa. Seria impossível impor o tipo de família que emergia na época – marido como rei e mulher subordinada, devotada ao lar e aos filhos – se as mulheres pudessem ser livres. Uma mulher sexualmente ativa era considerada um perigo público, pois acreditava-se que ela subvertia o senso de responsabilidade do homem, bem como sua capacidade de trabalho e autocontrole. 

As acusadas eram submetidas a todo tipo de torturas e eram vítimas de sadismo sexual. Pelo procedimento padrão, de acordo com Silvia, as mulheres “eram despidas e depiladas […], depois eram furadas com longas agulhas por todo o corpo, inclusive na vagina […]. Muitas vezes eram estupradas, […], seus membros eram arrancados, sentavam-nas em cadeiras de ferro embaixo das quais se acendia fogo; seus ossos eram esmagados”. Silva conclui que

A caça às bruxas foi, portanto, uma guerra contra as mulheres; foi uma tentativa coordenada de degradá-las, de demoniza-las e de destruir seu poder social.

Foi nessa época que as parteiras e obstetrizes passaram a ser impedidas ou desestimuladas a praticar seu ofício, pois sendo o parto um evento exclusivamente feminino, era automaticamente suspeito. Quem confiaria que aquele bebê nasceu realmente morto? Foi aí que os homens começaram a entrar na cena do parto e todas sabemos a perda coletiva que isso significou, a julgar pela epidemia de cesáreas no Brasil nos dias de hoje. Na mesma época, as amizades entre mulheres viraram objeto de suspeita, pois representavam um risco à união entre marido e mulher. A palavra gossip, que na Idade Média significava “amiga”, mudou de sentido e passou a significar “fofoca”.

Alguma semelhança com os dias de hoje?

Referência

FEDERICI, SILVIA. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Editora Elefante, 2017.


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