Um dos mais recentes livros da filósofa francesa Élisabeth Badinter (1944-) traz à tona um assunto bastante interessante que ela chama de “a revolução silenciosa” ocorrida nos últimos trinta anos em torno da concepção de maternidade. A tese de O conflito: a mulher e a mãe (2010) pretende mostrar que as mudanças em curso buscam, de modo simples e paradoxal, recolocar a maternidade no coração do destino feminino. E Élisabeth apresenta de modo claro e contundente a construção do aparato que sustenta tal ideia. Dividido em três grandes partes, o livro começa expondo as “ambivalências da maternidade”, depois desenvolve a chamada “ofensiva naturalista” para então situar na atualidade a “diversidade das aspirações femininas”.

Élisabeth começa por mostrar que a partir dos anos setenta, com o advento dos contraceptivos, ter uma criança deixa de ser uma consequência natural do casamento para ser uma escolha, colocando em cheque a antiga certeza em torno da ideia de “instinto materno” e dando lugar ao entendimento de que o desejo de ser mãe não é nem constante nem universal. Para a maioria das mulheres, contudo, ter ou não ter filhos permanece um dilema justamente em função da dificuldade de se conciliar os deveres maternos com a busca de realização pessoal. Apesar das mulheres terem iniciado um processo de conquistas por mais igualdade de direitos tanto nas esferas pública quanto privada, há mais de um século a sociologia documenta que o casamento beneficia amplamente os homens em detrimento das mulheres. É sabido que o custo da vida conjugal recai amplamente sobre as mulheres que se veem sobrecarregadas em relação à divisão de tarefas e a criação e educação dos filhos, ao mesmo tempo em que amargam prejuízos em relação à carreira profissional e à remuneração. Em geral, a chegada do filho reconduz a mulher de volta ao lar e empurra o homem para fora permitindo que ele retome suas atividades profissionais rapidamente. Além disso, é muito comum uma forte idealização da maternidade, que faz com que as futuras mães vejam apenas amor e felicidade quando na verdade a tarefa abarca considerável nível de fadiga, frustração, solidão e culpa.

O pós-guerra foi um período, segundo a autora, especialmente profícuo para as mulheres recolocarem em pauta seu status, sua identidade e sua relação com os homens. Por volta dos anos setenta, a crise econômica retoma os questionamentos em torno do mundo do trabalho, uma vez que muitos perdem seus empregos ou os mantém em condições precárias, sobretudo as mulheres que não se beneficiam nem do status social e tampouco alcançam a independência financeira. Muitas voltam então a se ocupar do lar e dos filhos. A esse contexto de crise material, cola-se a velha ideologia do naturalismo que reapresenta as leis da natureza e da biologia ao falar de “essência” e de “instinto”, propondo um retorno ao modelo tradicional da maternidade e do papel das mulheres. Emergem, na verdade, três discursos de diferentes horizontes a criticar os impasses do modelo cultural dominante: a ecologia, as ciências do comportamento e um novo feminismo essencialista. Tais discursos se aliam proclamando um “retorno à natureza”, pois enquanto mamíferas e sob a jurisdição de um intenso processo neuro-biológico-químico, as mães nutririam um vínculo automático com seu bebê e os casos omissos ficariam por conta de patologias. Conjuntamente, outras teorias vêm reforçar tais noções, como aquela do contato “pele a pele” impreterível na primeira hora de vida como garantia do estabelecimento do vínculo entre mãe e bebê; aquela que preconiza que o amor materno tem uma base biológica incontornável e obviamente o aleitamento materno seria a condição sine qua non para a construção dessa suposta ligação natural entre a mãe e seu bebê; uma nova geração de feministas que afirma a maternidade como “a experiência crucial” da mulher, uma vez que seria esse processo que nos diferencia dos homens e consequentemente nos faz mais capazes de construir um mundo melhor e mais justo. Vemos surgir, então, de modo paradoxal, um modelo de parentalidade bastante tradicional: a amamentação exclusiva e prolongada contribui para colocar o pai para fora da díade e exige da mãe uma disponibilidade absoluta. Tal afastamento do pai ironicamente revigora o modelo do casal patriarcal, onde o bebê é assunto da mãe enquanto o pai retoma serenamente suas atividades de antes. Além disso, o bebê deve ser colocado antes da mãe e antes do casal, relegando as necessidades e interesses da mulher ao segundo plano, uma vez que ela deve ceder todo seu tempo, sua energia e seu corpo pelo máximo de tempo possível ao recém-chegado.

Curiosamente, tais teorias negligenciam o fato elementar de que os seres humanos não possuem comportamento automático, ao contrário, agem ancorados na cultura e na racionalidade, e, portanto, não se reduzem à biologia. As questões possíveis de serem colocadas são inúmeras. E certamente os milhares de mães que jamais amamentaram estão aí para reivindicar a falência da ideia de instinto e a força da construção do vínculo entre o bebê e seus cuidadores. Apesar disso, o argumento da “natureza” se presta a impor leis e fundamentar conselhos, tornando-se uma referência ética dificilmente criticável. E o pano de fundo perverso dessa filosofia naturalista é, sem dúvida, a culpabilização, que acaba por instituir um modo único de viver a maternidade.

Todas as culturas são dominadas por um modelo materno ideal que varia conforme a época, mas que pesa sobre todas as mulheres. É possível aceitá-lo ou rejeitá-lo ou negociá-lo, mas é sempre em relação a ele que nos definimos, afirma Élisabeth. E hoje em dia o modelo é mais exigente do nunca. As mulheres encontram-se então em meio a um sem número de contradições. Algumas mulheres realizam-se plenamente sendo mães e é para o caso delas que se costuma falar de “instinto” ou de “vocação materna”. O filho é para elas a “obra de sua vida” e elas se dedicam integralmente. Tais mulheres existem, mas estão longe de ser a maioria. E muitas das mulheres que se propõem a esta empreitada, acabam descobrindo que se enganaram, que precisam cultivar outros perfis. Mas é impossível saber antes de tentar e certamente não é tarefa fácil assumir o erro e partir para outra. Na outra ponta, um número crescente de mulheres que abre mão de ter filhos. A seus olhos, a maternidade está associada a fardos e perdas: menos liberdade, menos energia, menos dinheiro, menos espaço para o prazer e a intimidade e também para a sua identidade. Estas mulheres costumam abortar e são chamadas childfree. Muitas adiam a decisão para mais tarde, uma vez que buscam realizar, primeiro, certas prioridades. Indefinidamente adiada, apenas perturbada pelo relógio biológico da mulher, a decisão acaba sendo tomada pelo tempo ou em função do conforto do casal que costuma levar uma vida bastante satisfatória. Existem ainda aquelas que querem ser mães, mas desejam claramente preservar seu espaço enquanto mulher, seja na profissão, seja na sexualidade. De um lado, a forte exigência do modelo materno vigente e, de outro, as grandes obrigações impostas pelo mundo do trabalho. Como então responder a um sem sacrificar o outro? Em geral elas não pretendem negociar a sua identidade profissional, pois não se veem como mães em tempo integral. Assim, elas procuram negociar de todos os lados, embora o equilíbrio entre os papéis permaneça sempre instável.

A decisão de ter filhos ou não revela aquilo que é privado e íntimo. Nos últimos anos as taxas de mulheres sem filhos na Europa variaram entre 10 e 26% e em outros países a tendência é bastante semelhante, sobretudo no que tange ao crescimento desses números. Atualmente as mulheres controlam sua reprodução, estudam, invadem o mercado de trabalho e buscam independência financeira ou fazer carreira, deixando a maternidade mais como uma questão do que como uma evidencia natural. Mesmo se a recusa de ter filhos é minoritária, a verdadeira revolução está aqui, pois tal ideia apela a uma redefinição da identidade feminina. Nos países com menores taxas de fecundidade, coexistem dois fatores: a força social do modelo da “boa mãe” e a ausência de políticas familiares que auxiliem efetivamente as mulheres. E na Europa, constata-se que nos países onde as mulheres participam mais do mercado de trabalho, elas também tem mais filhos, ou seja, as taxas de fertilidade são maiores.

Ao acessar os testemunhos das mulheres que não tem filhos surpreende o quanto elas parecem aderir ao modelo da “boa mãe”, que, aos seus olhos, torna impossível conciliar filhos e profissão. Diante desta incompatibilidade, não surpreende que tantas mulheres abdiquem dos filhos. Estudos mostram que as mulheres sem filhos se implicam fortemente na sua vida profissional e as mais diplomadas geralmente possuem melhores perspectivas econômicas e mais ocasiões alternativas de valorização de si. Assim, esta ligação entre o nível de instrução e a fertilidade é observável em quase todos os lugares. Pesquisas recentes têm mostrado também que os filhos interferem constantemente no diálogo parental e podem se tornar uma barreira considerável para o casal. Aqueles sem filhos costumam sublinhar inúmeras vantagens e enxergam os filhos, de fato, como uma ameaça à harmonia conjugal.

Apesar disso, ainda hoje é forte a tendência de se considerar a infertilidade um fracasso da feminilidade. A sociedade considera suspeita uma mulher casada que escolhe não ter filhos, uma vez que haveria um tempo em que seria necessário se abrir para a parentalidade. E apesar de tal mulher sofrer pressões de todos os lados, muitos indícios mostram que o estilo de vida dos casais sem filhos é secretamente invejado. A questão está, na verdade, na dificuldade de se reconhecer honestamente que muitas vezes os filhos implicam mais sacrifícios do que benefícios, aspecto este inadmissível, e logo, indizível perante uma sociedade que está longe de aceitar que além dos pais felizes existem também aqueles frustrados e amargos que talvez nem devessem ter tido filhos. A questão que fica é se os custos e benefícios da parentalidade podem suplantar o gosto da aventura e da experiência parental. A influencia de politicas familiares mais favoráveis à igualdade dos sexos e a evolução na direção de um modelo materno menos exigente parece contribuir para uma melhora das taxas de fertilidade. E mesmo que a quantidade de mulheres sem filhos permaneça estável, é certa a necessidade de se romper com a definição tradicional de feminilidade, uma vez que para um número significativo de mulheres a maternidade não é mais o principal. E mais: estas mulheres sem filhos provam que não existem características absolutas ou essenciais femininas que as distinguem dos homens.

Sabe-se que a reputação das mães francesas não é das melhores, uma vez que são conhecidas por promoverem a separação de corpo precoce com seu bebê e são muito pouco entusiasmadas com a ideia de ficar em casa amamentando. Elas confiam seus bebês a estranhos e usam massivamente a mamadeira. Elas estão também entre as mulheres que mais trabalham e mais cedo retornam ao trabalho, numa jornada de tempo integral, depois do nascimento do primeiro filho. Vale ressaltar ainda que a politica familiar francesa poderia ser melhor. Mas, paradoxalmente, a taxa de natalidade francesa é uma das mais altas da Europa. Élisabeth mostra que esta ideologia que coloca a mulher antes da mãe é uma tradição ancestral na sociedade francesa. E no começo do século XXI, a maioria delas permanece ligada a um triplo papel: conjugal, maternal e profissional. E o que parece beneficiar largamente a mulher francesa, contrariamente à maioria das europeias, é justamente o verdadeiro reconhecimento da sua identidade feminina por si mesma. Assim, quase nenhuma pressão social ou moral recai sobre a mãe que dá a mamadeira e coloca seu filho na creche antes de um ano. E a sociedade francesa admite há tempos que a mãe não é a única responsável pela criança. Ao contrário, quando mais se alivia o peso das responsabilidades maternas e mais se respeitam as escolhas da mulher e da mãe, mais elas se inclinam a ter outros filhos. O retorno do naturalismo que evoca o desgastado instinto materno e valoriza o sacrifício feminino, insistindo na culpabilização das mães, parece então constituir um dos piores inimigos para a emancipação das mulheres e a igualdade dos sexos e, ironicamente, à fertilidade.

Sobre a autora | Elisabeth Badinter é filósofa, escritora e historiadora. É atualmente uma das vozes mais importantes do movimento feminista francês e já foi traduzida em mais de vinte países.


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4 respostas

  1. Há muito tempo essa obrigação de ter filho me incomoda. As mesmas pessoas que acham estranho alguém escolher nao ter, julgam o tempo todo quem tem. Texto necessário. Muito.

    1. Verdade, Daiane. E eu penso que esse livro ajuda muito porque mostra uma infinidade de modos de vida das mulheres. Ter filhos é uma possibilidade entre muitas outras. E de fato, ser mãe e ser julgada é um par indissociável. Isso reforça a importância de falarmos muito sobre todos os lados da maternidade…

  2. Muito bom. Quero ler o livro. Já leu “Mães arrependidas”, da Socióloga Orna Donath? Quando eu tinha 32 anos uma ginecologista me disse que “na opinião dela uma mulher de verdade devia ser mãe”. Aquilo me vez pensar muito sobre a internalização dessa ideia de ser mãe. Eu já estava há 4 anos num relacionamento e ambos não queríamos filhos. Hoje com 35 anos e solteira continuo questionando imposição social. E gostaria de pesquisar algo sobre as mães e não mãos trabalhadoras no contexto da Pandemia.

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