Durante o ano passado tive a disciplina e o entusiasmo de ler vários livros – faço inclusive parte de um clube do livro, que se reúne para a discussão da obra escolhida do mês. Quando entrei no clube, no final de 2015, não imaginei que fosse me ajudar tanto a retomar esse velho hábito: ler pelo prazer de ler. O clube me possibilitou conhecer a autora italiana/napolitana Elena Ferrante.

Elena Ferrante: para começar, não é nem mesmo seu nome verdadeiro, ela adotou esse pseudônimo. Sabe-se pouco sobre sua vida, apenas que nasceu e foi criada em Nápoles e que atualmente mora em outra cidade (e talvez outro país). Em Frantumaglia (2017), livro que compila cartas da autora trocadas ao longo dos anos com editores, jornalistas e leitores, argumenta: “digamos então que eu preferi publicar livros sem precisar me sentir obrigada a ter uma carreira como escritora. Até agora, não me arrependi”.

A bem da verdade, é possível conhecer Elena através de suas personagens femininas: são filhas, mães, mulheres com vidas e desejos complexos, muitas vezes inadequados ao seu tempo. Na tetralogia napolitana (A Amiga Genial, História do Novo Sobrenome, História de Quem Foge e Quem Fica e História da Menina Perdida) somos convidadas a acompanhar a amizade de Lila e Lenu da infância até a velhice, dentro do contexto de uma Itália de pós-guerra, que se reestrutura e abriga pessoas pobres, endinheiradas e também camorristas (Camorra, a “máfia” napolitana), que impactam na vida das duas meninas e também de outros moradores do bairro. Soube recentemente que o primeiro livro da tetralogia se tornará uma série no canal HBO. Nem preciso dizer que irei assistir.

A escritora Lucia Berlin

A segunda autora a que me refiro chama-se Lucia Berlin. Lucia (1936-2004) é uma escritora americana que passou grande parte de sua vida no anonimato, não porque o desejava, mas porque o reconhecimento da obra somente veio após sua morte. O Manual da Faxineira é uma compilação de quase todos os contos da autora (ela escreveu no total 76) que narram a vida de seus personagens – e dela própria, pois os contos contêm material autobiográfico – sem grandes formalismos e frases perfeitas. Desde o início, o leitor percebe que Lucia está ali e não tem pretensões de agradar ninguém. São imigrantes, dependentes químicos, pessoas à margem que aparecem sem pudor nas linhas, são “low profile”, mas, de tão reais, trazem a nossa memória pessoas que conhecemos.

Se através de Elena conhecemos a Itália e, mais especificamente, Nápoles, com Lucia somos transportados para o Chile. Na época, seu pai foi transferido a trabalho e foram tempos abastados para a família Berlin, narrados através dos lugares que frequentavam e também onde nasceu a relação com o idioma espanhol e com a América Latina – na idade adulta, morou no estado do Novo México (EUA) e no México, e mais para o final da vida, mudou-se para o Colorado e para o sul da Califórnia. Lucia trabalhou como faxineira (que originou o conto, e por conseguinte, o best seller), recepcionista, assistente hospitalar e terminou seus dias como professora de escrita criativa na Universidade do Colorado.

Mas porque elas são incríveis? Na minha opinião, porque são mulheres que vivem (viveram) à frente do seu tempo. Ferrante, de modo claro, se recusa a participar da relação comercial que existe entre obra, autor e biografia de vida. Ela diz que os livros estão assinados, não são anônimos, mas que devem ter percurso e fôlego próprios, sem depender da autora. Em suas entrevistas, que são respondidas por e-mail ou através de sua editora, há também um posicionamento feminista, que questiona o lugar da mulher, da mãe, das relações de trabalho e poder de mulheres e homens na sociedade italiana. No caso de Berlin, se olharmos para sua biografia, iremos nos deparar com uma mulher que casou e separou 3 vezes, mãe de 4 filhos, com problemas de alcoolismo e que fez disso a matéria prima para sua obra. É o abismo sendo contado com um humor que desarma, pois, como ela mesma diz em um de seus contos: “exagero muito e misturo realidade com ficção, mas, na verdade, nunca minto”. Para mim, são duas mulheres que não mentem e, através de suas histórias – reais e ficcionais – têm muito a ensinar sobre o protagonismo feminino.

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