Já falamos aqui e aqui sobre o poder de transformação que o livro Mulheres que correm com os lobos, de Clarissa P. Estés, teve sobre várias mulheres. E eu não me canso de aprender com ele, ainda mais agora que o Fala Frida promove o clube de leitura Toca das lobas! Dia desses me peguei pensando no conto de Vasalisa (terceiro capítulo do livro). A história nos ensina que a maioria das coisas não é o que parece e descreve a iniciação de uma menina – Vasalisa – em direção a seus instintos e sua intuição de mulher selvagem. 

O conto começa com Vasalisa no leito de morte de sua mãe. Antes de morrer, esta lhe dá de presente uma boneca e pede que ela a guarde com cuidado, que a consulte quando estiver em dúvida sobre que caminho seguir, que a alimente e que não conte a ninguém sobre ela. A boneca de Vasalisa simboliza sua intuição e a história se desenrola em torno do aprendizado de ouvi-la. Porém, este não é um processo fácil e exige um passo anterior: a morte da mãe-boazinha-demais. 

Calma, Vasalisa não mata a própria mãe! Clarissa explica que a mãe-boa-demais é uma “mãe psíquica protetora”, é uma mãe que habita o interior de cada mulher. Porém, ela “não é adequada para ser um guia para [su]a futura vida instintiva”. A mãe-boa-demais foi necessária durante as fases iniciais da vida da menina – tendo sido “a mãe dos dentes de leite, a mãe abençoada que todo bebê precisa para dar os primeiros passos no mundo psíquico do amor”.

Porém, chega um momento em que é necessário “assumir a realidade de estar só, de desenvolver a própria conscientização quanto ao perigo, às intrigas, à política. Tornar-se alerta sozinha, para seu próprio proveito; deixar morrer o que deve morrer. À medida que a mãe-boa-demais morre, a nova mulher nasce”. Eis aí um grande desafio.

Clarissa complementa que esse dramático definhamento psicológico da mãe[-boa-demais] ocorre pela primeira vez quando a menina passa do ninho acolchoado da pré-adolescência para a selva frenética da adolescência. Para algumas meninas, porém, o processo de desenvolver  uma mãe interior nova, mais esperta — a mãe chamada intuição — está apenas pela metade nessa época. 

Mas o que significa matar a mãe-boa-demais na vida cotidiana? Lembro-me da primeira vez que saí do Brasil para viver e trabalhar na Inglaterra. Eu tinha 20 anos, estava no meio da faculdade e tinha um namorado que amava (ainda amo). Depois de anos desejando a experiência de estudar inglês fora do país, a oportunidade finalmente apareceu. Mas eu teria que abrir mão de muitas coisas: do conforto da casa da minha mãe, do seu colo e apoio, da rotina conhecida de estágio e faculdade, do domínio da língua, da companhia diária do meu namorado (havia a possibilidade de ficarmos meio ano longe um do outro), da mesada e de muitas outras certezas. Eu teria que me virar sozinha, em todos os sentidos. Tive muito medo de perder aquela vida, de ser esquecida pelas pessoas que me amavam (que bobagem, pois, se me amam, como vão me esquecer?). Conversei com uma mulher muito sábia que me encorajou. E eu fui. Foi a melhor decisão que tomei na minha vida. Naquele momento o mundo literalmente se abriu pra mim. Eu nunca mais fui a mesma. Tive a certeza da minha força em aprender a partir das situações mais complexas, de me reinventar e recomeçar sempre que for necessário. 

Mas é bom ficar atenta, porque, como lembra Clarissa, a “a mãe-boa-demais tem a resistência de uma espantosa erva daninha e sobrevive, agitando suas folhas e superprotegendo a filha […]. Numa situação dessas, as mulheres muitas vezes se sentem tímidas demais para seguir adiante e entrar na mata, oferecendo toda a resistência possível”.

Quantas vezes optamos por uma vida segura e tranquila ao invés de nos jogarmos no desconhecido? Que escolhemos a profissão dos pais por ser o caminho mais curto? Que casamos e temos filhos simplesmente porque é isso que esperam de nós? Que calamos e consentimos quando nossa vontade era gritar e sair correndo? Que aceitamos a humilhação por não saber que outro caminho tomar? Quanto tempo levamos para tomar coragem de abandonar uma relação que nos oprime?

Nós mulheres sabemos bem do que se trata a mãe-boa-demais dentro de nós, embora muitas vezes tenhamos dificuldade de nomeá-la. Virginia Woolf a chamou de “anjo do lar” (entenda aqui). Somos educadas, desde muito pequenas, a ter “bons modos”, a fechar as pernas, a não se sujar, a não gritar, a cooperar, a cuidar dos outros, a sonhar, mas não tão alto quanto nossos primos ou irmãos, enfim, a sermos meninas boazinhas. Quantas vezes, ao longo da vida, ouvimos frases como: “Ora, não diga isso”, “Você não pode fazer isso”, “É, você sem dúvida não é filha (amiga, colega) minha, se age assim”, “Tudo é perigoso lá fora”, “Quem sabe o que será de você se insistir em sair desse ninho quentinho” ou “Você só vai se humilhar, sabia?” ou ainda, a sugestão mais insidiosa, “Finja que está se arriscando, mas em segredo continue aqui comigo”.

Todas essas são vozes da mãe-boa-demais assustada e bastante desesperada dentro da psique. Ela não tem como agir de outro modo; ela é o que é. No entanto, se nos fundirmos com a mãe-boa-demais por muito tempo, nossa vida e nossos talentos expressivos recuam para a sombra, e nós definhamos em vez de nos fortalecermos.

Tal como a mãe-boazinha-demais, o anjo do lar precisa morrer. A facadas, se necessário. Não que esse seja um processo fácil, mas precisa ser iniciado. Outro momento em que me fortaleci enormemente (e matei mais um pouquinho a mãe-boa-demais) foi durante o meu parto. Durante minha gravidez, pesquisei muito e decidi que queria tentar um parto natural. Porém, a conduta médica recorrente faz de tudo para nos desencorajar de tal coisa. Além disso, a estrutura hospitalar na cidade em que eu residia na época não tinha condições de me oferecer tal coisa. Então, encontrei outra cidade e profissionais que pudessem tentar esse parto junto comigo (porque sei que não há garantias). Foi uma decisão muito díficil. Arrisquei ter que estar longe do meu marido durante o parto (o que felizmente não aconteceu), saí da segurança da minha casa para ficar na casa de parentes. Mas valeu cada minuto. O trabalho de parto em si é um total jogar-se num abismo, pois você não tem ideia de como vai se desenrolar. Foi muito, muito difícil. Mas igualmente recompensador.

Reconheço também que a maternidade pode nos afastar um pouco desse processo de autoconhecimento e libertação. As demandas de um bebê pequeno são infinitas, o cansaço é extremo e, do jeito que nossa sociedade patriarcal ainda está organizada, o peso do cuidado ainda recai muito mais sobre a mãe. Some a isso uma carreira para retomar, uma casa para cuidar e toda a lista de tarefas que muitas de nós assumimos. É a tal da carga mental. Fomos ensinadas, desde pequenas, a cuidar de tudo e de todos – e a fazer isso perfeitamente, é claro. Cuidamos dos nossos filhos e filhas, do marido, dos nossos pais, dos pais do nosso companheiro, das tias da escola, do cachorro, do gato e do periquito. Só não cuidamos de nós mesmas. E fazemos isso tudo sem reclamar, sem questionar. Apenas cuidamos e fazemos o que esperam de nós. Clarrisa defende que “às vezes, a mulher está tão enredada sendo a mãe-boa-demais de outros adultos que eles se grudam às suas tetas e não pretendem deixar que ela os abandone. Nesse caso, a mulher tem de afastá-los a coices e continuar assim mesmo”. Ela complementa que “para [as] mulheres adultas a quem os rigores da própria vida [a] isolam e distanciam da sua vida profundamente intuitiva e cuja queixa muitas vezes é a de estarem extremamente cansadas de cuidar de si mesmas, existe uma cura eficaz e sábia. Uma retomada da investigação ou uma nova iniciação irá restabelecer a intuição profunda, independente da idade de uma mulher. E é a intuição profunda que sabe o que é bom para nós”.

Percebo que a cada dia estou mais forte e próxima de mim mesma. Por isso, querida mulher, eu te digo: não, você não tem a obrigação de fazer tudo o que faz. Sim, você está sobrecarregada. Você tem o direito de virar as costas e sair andando sem olhar pra trás a qualquer tempo. Você tem o direito de estar com raiva. Pegue essa energia e a transforme. Porque quando matamos o “arquétipo da mãe-boa-demais-e-sempre-gentil da nossa psique, largamos a teta e aprende[mos] a caçar. Há uma mãe selvagem à espera para nos ensinar”. 

 

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