Já tem alguns anos que venho estudando o movimento feminista e promovendo mudanças importantes na minha vida. Um dos livros mais impactantes que li sobre o assunto é o Why I am not a feminist, de Jesse Crispin. É uma daquelas leituras que embrulha o estômago a cada página, porque levanta verdades inconvenientes e necessárias. Jessa fala que de nada adianta eu ser uma mulher livre sexualmente, empoderada, etc., se tudo isso vem a partir da opressão de outras mulheres. Em outras palavras, enquanto uma mulher estiver submetida ao patriarcado, todas estaremos. Ela fala ainda que o feminismo é pra incomodar, pra tirar a gente da zona de conforto – por isso ela critica tanto esse feminismo soft, que, independente do que uma mulher faça, ela é feminista. É preciso olhar além do próprio umbigo.

Durante o doutorado, estudei pós-colonialismo – a ideia da abordagem é entender o legado de colonialismo e da escravidão no mundo de hoje, no meu caso, os reflexões destes acontecimentos históricos na prática das empresas. Estudei durante anos os pormenores da “expansão” colonial e toda a violência, roubo e opressão associados ao processo. Entendi como mecanismos complexos criaram ideologias racistas em que a raça branca foi construída como superior e considerada digna de “civilizar” as raças inferiores do mundo. Então não é nenhuma novidade pra mim que o racismo é uma praga global e um fenômeno estrutural.

Na medida em que estudava feminismo, fui entendendo o quanto as mulheres – ou seja, metade da população mundial – vêm sendo oprimidas, violentadas e mortas, dia após dia. E o sentimento que vinha era o de raiva, que aos poucos foi se transformando em combustível para modificar essa realidade.

Só que eu não estava preparada para me ver como opressora. Foi aí que comecei a estudar feminismo negro… Foi como se uma bomba tivesse caído sobre minha cabeça!

Uma das primeiras intelectuais negras com quem tive contato foi Angela Davis, filósofa e ativista estaduniense². O que fui percebendo é que, dentro do feminismo, existem mulheres e mulheres, e que suas pautas nem sempre são as mesmas.

No início do movimento feminista, as mulheres negras sempre estiveram presentes, mas muitas vezes não eram ouvidas pelas mulheres brancas. Havia, inclusive, “dúvida”, por parte destas, se as mulheres negras deveriam ter acesso ao voto nos Estados Unidos. Enquanto mulheres brancas de classe média tentavam se desvencilhar de estereótipos da mãe e esposa perfeita e buscavam espaço no mercado de trabalho, as mulheres negras sempre trabalharam – seja como escravas ou, após a abolição, em funções precarizadas, com péssimas condições e com poucos ou nenhum direito trabalhista. Comumente eram as mulheres negras que limpavam as casas e cuidavam das crianças das mulheres brancas. Então como falar de igualdade de direitos para as mulheres se uma questão central – classe – atravessava o movimento feminista?

As mulheres brancas que participavam dos movimentos feministas tinham dificuldades em reconhecer a opressão de suas próprias empregadas. No livro Mulheres, raça e classe, Davis cita um artigo de 1902 intitulado “Jornada de nove horas diárias para serviçais domésticas” (p. 104) e mostra a seguinte conversa:

“As moças [balconistas]”, ela disse, “têm de ficar de pé dez horas por dia, e me dói o coração ver o cansaço no rosto delas.” 

“Sra. Jones”, eu disse, “quantas horas por dia sua empregada fica de pé?”

“Por que? Eu não sei”, ela ofegou, “cinco ou seis, creio eu”. 

“A que horas ela se levanta?” 

“Às seis.” 

“E a que horas ela termina o trabalho, à noite?” 

“Por volta das oito, acho, normalmente.” 

“São catorze horas…” 

“Ela pode se sentar durante o trabalho.” 

“Durante qual trabalho? Lavando? Passando? Varrendo? Arrumando as camas? Cozinhando? Lavando a louça? […] Talvez ela se sente por duas horas, nas refeições e quando prepara os vegetais, e quatro dias por semana ela tem uma hora livre à tarde. Sendo assim, sua empregada fica de pé pelo menos onze horas por dia, incluindo o agravante de ter de subir escadas. O caso dela me parece mais digno de compaixão do que o da balconista da loja.” 

Minha visitante se levantou, corada e com faíscas nos olhos. “Minha empregada sempre tem livres os domingos depois do jantar”, ela disse.

“Sim, mas a balconista tem todo o domingo livre.” 

Foi mais ou menos como a Sra. Jones que eu me senti quando me dei conta de que só tive condições de criar o Fala Frida porque havia uma mulher negra limpando minha privada e outras tantas mulheres de classe mais baixa do que a minha cuidando do meu filho na escola. E aí, como digerir esse incômodo? Já dizia Crispin que o feminismo vem pra incomodar, pra questionar nossos privilégios.

A grande questão é que se não fizermos um trabalho intenso de pesquisa, leitura e questionamento das “verdades” que conhecemos, dificilmente conseguiremos reconhecer o processo histórico de construção da raça branca como superior a qualquer outra, seremos muito provavelmente racistas – pelo simples fato de que a sociedade é racista, seja ela a brasileira, a estaduniense ou a nigeriana.

E essa diferença de pautas feministas para mulheres brancas e negras permanece absurdamente atual nos dias de hoje. Exemplo disso é o fato de muitas mulheres brancas estarem desconstruindo um padrão de beleza e diminuírem o uso de cosméticos e rituais de maquiagem, enquanto que produtos de beleza para mulheres negras são uma novidade recente no mercado – até então era como se elas não existissem (vale lembrar que as mulheres negras representam 25% da população brasileira, então percebam a quantidade de pessoas excluídas). Ou seja, se para mulheres brancas, “empoderar-se” pode significar usar menos maquiagem, para as mulheres negras, “empoderar-se” pode significar usar mais maquiagem.

E você, já parou pra pensar no quanto é racista?

1 O título deste texto faz referência ao livro “Quando me descobri negra”, de Bianca Santana, que relata ter trinta anos, mas ser negra há apenas dez.

² Você já parou pra pensar que as pessoas que moram nos Estados Unidos clamam para si o título de “americanos” e que os presidentes costumam dizer, no fim de seus discursos “Deus abençoe a América”? Certamente essa benção não inclui México nem Honduras, que também ficam na América. Aliás, eu, que nasci no Brasil, também sou americana, afinal, o Brasil fica na América, certo? América do Sul. Chamar quem nasceu nos EUA de norte-americanos estaria um pouco mais correto, mas os canadenses também o são. Todo esse jogo de palavras é uma salada muito bem orquestrada por um processo de colonização dos Estados Unidos (também conhecido como imperialismo americano) em relação ao resto do continente americano. Por conta isso, prefiro utilizar a palavra estaduniense, que refere-se a quem nasceu, de fato, nos Estados Unidos.

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