Mais um 8 de março se aproxima e eu gostaria de ter ótimas notícias pra te dar. Adoraria poder dizer que avançamos muito no último ano, que a sociedade está cada vez mais igualitária – e portanto feminista -, que as mulheres conquistaram mais direitos e que vivem uma vida absolutamente satisfatória. Só que não.

Há exatamente um ano, a pandemia causada pelo coronavírus chegou forte no Brasil. Até o momento em que escrevo esse texto, mais de 260 mil pessoas tiveram suas vidas ceifadas não só pelo vírus, mas também pelo desgoverno, descaso e desinteresse que impera no nosso país. Não bastasse a enorme dor de tantas famílias enlutadas, as mudanças na vida cotidiana afetaram profundamente um grupo da sociedade já historicamente oprimido: as mulheres.

A pesquisa Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia, realizada com mais de 2600 mulheres entre abril e maio de 2020 pelo Gênero e Número e pela Sempreviva Organização Feminista trazem dados importantes sobre este cenário. O primeiro deles é que

50% das mulheres brasileiras passaram a cuidar de alguém na pandemia.

E esse número é ainda maior entre mulheres negras (52%) e mulheres que vivem na zona rural (62%). O que a maioria das mulheres (72,4%) relata é que o cuidado de crianças ou idosos foi muito intensificado, exigindo maior monitoramento ou companhia. Para aquelas que cuidam de crianças até 12 anos, 37% consideraram que o cuidado aumentou e 40% consideraram que aumentou muito.

Entre as mulheres que seguiram trabalhando fora de casa durante a pandemia, 41% afirmaram trabalhar mais no período. Destas, 55% são brancas e 44% são negras. As atividades de trabalho remotas têm se estendido por longuíssimos períodos e as tarefas domésticas continuam não sendo igualmente distribuídas entre os gêneros. Mais de 35% das entrevistadas declararam que são as únicas responsáveis pelo trabalho doméstico e de cuidado em suas casas, sendo que somente 11% delas moram sozinhas.

Outro dado preocupante é que

58% das mulheres desempregadas são negras.

Mesmo antes da pandemia, as mulheres brancas costumavam estar mais ocupadas do que as mulheres negras e estas historicamente ganham menos do que as mulheres brancas mesmo em posições equivalentes. Em outras palavras, um grupo de mulheres que já vivia em situação de maior vulnerabilidade relativa se encontra em um momento ainda pior devido à pandemia.

Para 91% das entrevistadas, a percepção de violência se intensificou durante o isolamento.

E 8,4% afirmam terem sido vítimas de alguma forma de violência, percentual que aumenta nas classes mais baixas.

Novamente, percebemos um aumento na gravidade da situação que já era precária para muitas mulheres.

A grande questão que salta aos olhos ao analisarmos os dados desta e de outras pesquisas é que estamos vivendo uma verdadeira CRISE DO CUIDADO.

A divisão do trabalho doméstico continua sendo pautada pelo gênero. Muitos homens seguem fechando a porta de seus escritórios e deixando as mulheres se virarem com suas próprias atividades profissionais, além do cuidado com a casa e crianças. Por conta disso, mais mulheres mães foram demitidas durante a pandemia em comparação com mulheres sem filhos. Entre as mulheres com filhos de até 10 anos, sua participação no mercado de trabalho caiu de 58,3% em 2019 para 50,6% em 2020, de acordo com o IBGE. Um pesquisador do Ipea afirma que demos um salto de 30 anos para trás na participação feminina no mercado de trabalho, um retrocesso para toda a sociedade.

Muitas mulheres negras tiveram que colocar em risco sua saúde e de seus familiares para trabalharem fora de casa e manterem as contas em dia. É emblemático o fato de que a primeira morte por Covid-19 no Rio de Janeiro tenha sido da empregada doméstica de 63 anos Cleonice Gonçalves, infectada por sua patroa. Ou seja, a situação das mulheres negras, que já era ruim no Brasil, ficou ainda pior com a pandemia.

Com mais famílias em casa, a violência doméstica segue aumentando, especialmente entre mulheres negras. Vale lembrar que 70% das trabalhadoras na área da saúde são mulheres, de acordo com a ONU, e portanto, diretamente expostas ao vírus. Um último ponto importante é que algumas análises mostram que uma das causas da pandemia do coronavírus é o desmatamento excessivo de florestas tropicais – mais um exemplo da nossa falta de cuidado, só que nesse caso com a natureza.

Enquanto atividades que envolvem o cuidado – seja das crianças, das pessoas com deficiência, dos idosos, dos doentes, da casa e do meio ambiente – não forem devidamente valorizadas, priorizadas e remuneradas, não tem como avançarmos como sociedade.

Infelizmente, ainda falta muito para podermos efetivamente celebrar o 8 de março. Ainda temos muito a cobrar, vigilar e transformar.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *