Recentemente, acompanhei uma polêmica que rolou na internet. O motivo: Marcos Piangers aceitou dar uma palestra na Associação Leopoldina Juvenil, um clube de Porto Alegre. A data seria 8 de março de 2018, Dia Internacional da Mulher e a pauta: “como é aprender diariamente com suas filhas a ser mais criativo, inovador e bem humorado”.

Marcos, pra quem não sabe, é um cara super bacana, pai de duas meninas – Anita e Aurora – que escreveu dois livros sobre paternidade: Papai é pop I e II. Em suas palestras e vídeos, vem convidando outros pais a se jogarem de cabeça nessa empreitada, a assumirem sua parcela na criação de seus filhos e filhas e a curtirem as dores e delícias de ser pai. Gostamos tanto do trabalho dele que o elogiamos aqui no Fala Frida. Mas então qual o problema de um cara tão legal como o Piangers falar sobre esse tema para uma plateia feminina no Dia da Mulher? Eu vejo vários.

Falar de parentalidade no Dia da Mulher Nem toda mulher é ou deseja ser mãe. Embora a sociedade ainda tenha dificuldades, este é um fato que precisa ser aceito. Claro que é impossível que uma palestra agrade a todas as mulheres porque elas são múltiplas em seus desejos e interesses, mas ao propor este assunto, a Associação Leopoldina está inferindo que criação de filhos é um assunto de interesse das mulheres – ou, em outras palavras, está reforçando a maternidade compulsória. E nós feministas lutamos contra isso: somos a favor da escolha de cada mulher em relação a seu corpo. Em segundo lugar, como muito bem pontuado por Ligia Sena em seu perfil, as mulheres, há milênios, têm sido as principais cuidadoras das crianças mundo afora. Somos nós que, usualmente, gestamos, parimos, amamentamos, cuidamos, embalamos, alimentamos e educamos o futuro da humanidade na maior parte do tempo. E aí vem Marcos Piangers – um homem – nos falar sobre como ele aprende a ser mais inovador e criativo com suas filhas? Não seria o mesmo que ensinar o padre a rezar a missa? Nós mulheres amamentamos enquando procuramos emprego, cozinhamos enquanto lavamos roupa e ajudamos no dever e, por pura necessidade, inventamos uma coisa chamada “empreendedorismo materno” para escapar de um mercado de trabalho que não nos atende… Se viver equilibrando pratos todos os dias não for criatividade e inovação, então eu realmente não sei o que é. Será que o Piangers entende mais disso do que nós mulheres? Talvez não estejamos fazendo tudo o que fazemos com bom humor – pelo mero fato de que estamos exaustas por conta da carga física e mental envolvida em ser mulher e mãe e também porque não estamos mais dispostas a cumprir com o ideal de docilidade que a sociedade nos impõe. Além de fazer tudo isso, eu estou aqui escrevendo esse texto pra tentar transformar um pouco essa realidade.

Minimizar o significado da data Por que lembramos o 8 de março como o Dia Internacional da Mulher? (não usei a palavra celebramos porque diante de tanta violência que as mulheres ainda sofrem, não me sinto no direito de comemorar). O Dia da Mulher relembra as lutas históricas de metade da população mundial por mais direitos e menos violência. Teve início no começo do século XX, com as greves e manifestações pelo direito ao voto (lembre aqui o post sobre as sufragistas), depois passou a reivindicar mais liberdade sexual nos anos 1960 e recentemente, a briga tem sido pelo fim do assédio e da violência doméstica, bem como a promoção da igualdade salarial e de uma divisão de tarefas domésticas mais igualitária. Muita gente argumentou que adoraria ver o Piangers falar, tanto para uma plateia feminina quanto masculina, já que ele tem muito a contribuir pra uma sociedade melhor. Concordo. Só que temos outros 364 dias no ano que não são o Dia da Mulher. Esse dia é nosso, é sobre protagonismo feminino. E tem muito mais a ver com luta do que com rosas vermelhas. Você já reparou o que usualmente acontece no dia, ano após ano? Uma avalanche de estereótipos e clichês. Somos presenteadas com flores, bombons, “mimos”. Nos dizem como é lindo ser mulher; ser mãe então, que delícia! Ou então, como ocorreu em 2015, o Senado Federal ofereceu a suas colaboradoras um curso de culinária, com o bônus de estabelecer uma analogia entre o trabalho em equipe e a “necessidade de manter o equilíbrio emocional”. Ou ainda quando o presidente da república, em 2017, afirmou que o papel da mulher na economia é notar as flutuações de preços no orçamento doméstico. Eu gostaria que fosse piada do século passado, mas não é. Gente, 8 de março é uma data para reivindicar respeito e igualdade de direitos. Para lembrar das tantas mulheres que já deram sua vida à causa feminista. E às milhares de outras que foram assassinadas por seus parceiros. Você não acha que o 8 de Março é um dia perfeito para dar espaço a uma mulher incrível?

Ocupar o espaço das mulheres Muito tem se falado ultimamente sobre lugar de fala. Sobre quem fala sobre o que e com que propriedade. Não podemos esquecer que no Brasil os homens ocupam os principais espaços de poder. Exemplo disso é que eles ocupam 84% das cadeiras de presidente nas empresas brasileiras segundo a Exame, bem como 90% dos assentos do parlamento, segundo a Agência Brasil. É muito lugar ocupado por homem em uma sociedade formada por 50% de mulheres. Enquanto estamos em casa “sendo mulheres”, ou seja, cuidando da casa, das crianças e da beleza – os homens estão lá fora decidindo nosso futuro, fazendo leis, políticas públicas e normas empresariais que favorecem… você sabe quem. O fato é que as mulheres precisam ocupar os espaços de poder e de fala! Precisam ser professoras, escritoras, legisladoras, presidentes, jornalistas, ativistas, juízas, policiais, palestrantes. Porque cada espaço que ocupamos traz uma oportunidade de influenciarmos as pessoas ao nosso redor e transformarmos o mundo em um lugar mais igualitário. Estamos lutando por isso há séculos – literalmente – e justo no dia que marca essa luta, a Associação Leopoldina convida um homem para ocupar o lugar que deveria, por direito e por lógica, ser de uma mulher.

Tem muita mulher incrível por aí Pra fechar, gostaria de lembrar que a Ana Cardoso, esposa do Marcos Piangers, é escritora, professora e palestrante. Ana escreveu um livro super bacana sobre maternidade chamado Mamãe é rock. Ana é jornalista e mestre em Ciência Política, coordena o projeto cultural Bonne Chance, trabalha para o Canal Bloom produzindo conteúdo sobre criação de filhos, escreve para a Revista Pais e Filhos e é integrante da Casa da Mãe Joana. Deu pra ver que ela é uma profissional super qualificada e poderia tranquilamente falar tanto sobre a condição feminina quanto sobre maternidade. E existe mais um montão de mulher da porra por aí que poderia dar uma palestra sensacional. Embora eu tenha ressalvas a falar sobre maternidade no Dia da Mulher como já expliquei, a Ana seria uma opção muito mais acertada para protagonizar a data do que o Piangers.

Depois de muita polêmica na internet sobre a participação do Piangers no evento, encabeçada pelo perfis @feministasgm, @ligiamsena e @carolinie_figueiredo (especialmente no perfil do Facebook da Carolinie) ele acabou cancelando sua participação no evento. Não creio que tenha havido má fé da Associação Leopoldina ao convidá-lo. Porém, a escolha do palestrante e do tema da palestra refletem o que nós feministas chamamos de “machismo estrutural”, ou seja, um machismo que está nas instituições, nas leis, nos sistemas de pensamento e que justamente por estar assim tão entranhado na nossa sociedade, é difícil de ser visto a olho nu. Mas que foi um erro, foi. Resta saber quem vai falar agora.

*Esse texto foi publicado originalmente no dia 8 de março de 2018. Veja outras reflexões sobre o Dia da Mulher aquiaqui e aqui.


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Uma resposta

  1. Protagonismo e voz! A palestra pode ser incrível e acho que tem algo de transformador num homem de contando publicamente sobre o quanto aprende com suas meninas, mas a gente não precisa de mais homens falando sobre todos os assuntos, precisamos de protagonismo e voz! Sinto muito Piangers!

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