Jamais ouvi mulher capaz de falar tão delicadamente acerca de temas tão fundamentais.

Nicole sonha alto. E chora.

Hoje vive entre parques e livros a fim de continuar a sonhar |

 

| Porque você escreve? |

 Eu escrevo porque eu tenho muito dentro de mim… e transborda! Então eu preciso colocar isso para o mundo… por isso!

| Com o que você sonha? |

Ah essa é fácil… [risos]… eu sonho com um mundo mais igual, eu sonho com um mundo mais justo… eu sonho que as mulheres tenham todas as oportunidades que elas puderem imaginar nas suas vidas… eu sonho com um mundo sem violência… eu sonho com um mundo de amor… se todo mundo conseguir praticar o amor… não tem porque fazer guerra, não tem porque destruir o mundo, não tem porque destruir a natureza, não tem porque maltratar as outras pessoas, não tem porque ser intolerante… e se a gente tiver amor o suficiente a gente vai amar até a diferença… então eu sonho com esse mundo em que as pessoas se amam, se respeitam, respeitam os outros, os animais, a natureza… que as pessoas possam vivenciar o seu potencial mais puro e mais alto e mais intenso…

| Então há lugar para a utopia? |

Há… tem que ter… senão não dá pra continuar [risos]… a gente tem que ter o que perseguir, nem que nunca consiga… provavelmente eu vou morrer sem ver esse mundo, mas talvez eu veja um mundo mais perto disso, um mundo que esteja indo nessa direção e aí eu já vou estar feliz e se eu puder contribuir com a construção desse mundo então, nossa, eu vou morrer em paz.

| E a arte, ela serve para alguma coisa? |

…então…eu acho que a arte, ela… consola, a beleza consola… e diante deste mundo que ainda é tão distante do mundo que eu sonho, a arte é uma forma de conseguir continuar vivendo e levando e sonhando… a arte ajuda a sonhar, a arte ajuda a imaginar esse mundo que a gente quer, a arte ajuda também a dar um tempo desse mundo violento que a gente vive um pouco todos os dias… e pra quem tem um propósito de vida, de melhorar esse mundo… porque tem momentos em que fica muito difícil, fica muito pesado carregar esse mundo nas costas… então a arte é um consolo mesmo… a arte é um respiro, uma brecha.

| E do que você sente saudade? |

 Eu acho que eu sempre sinto saudade dos momentos com as pessoas queridas… fases legais da vida, momentos legais… da ingenuidade eu acho… porque [risos]…  depois que a gente tira a venda dos olhos… não tem mais volta, então estar alheio… eu sinto saudade disso… assim embora seja uma coisa ótima e eu jamais trocaria enxergar com olhos bem abertos isso que acontece, eu não trocaria isso jamais, mas… é uma fase da vida,  são momentos da vida e quando a gente vai ficando adulto a gente vai tirando essas vendas… mas viver esses momentos sem saber disso é bom também… e se eu puder preservar isso um pouco com meu filho e… conseguir mostrar pra ele em doses homeopáticas…

| O que te dá medo? |

… me dá medo estar ausente para o meu filho, morrer… não por mim, porque se eu morrer tudo bem pra mim… eu tenho medo… assim… por ele, sabe… e eu tenho medo de perdê-lo… [lágrimas]… não dá nem pra imaginar que é um amor tão grande… porque qualquer coisa de ruim que aconteça com ele eu sei que eu sempre vou estar ali, mas dá medo né… o mundo tem tantos perigos, tem tantas doenças, tem tantas coisas que podem acontecer… e eu tenho certeza que a gente vai encarar o que vier… mas isso dá medo.

| O que é que te salva? |

O amor… o amor do meu companheiro [lágrimas]… o amor das pessoas que eu escolhi conviver… me sentir aceita, acolhida, querida, parte… isso salva… isso me salva todos os dias.

| O que é a verdade? |

Então… essa é complexa… porque existem muitas, não existe uma… e eu acho que uma das primeiras libertações pra mim foi entender isso… entender que a minha não é a única ou que não é possível perseguir uma única verdade… que isso é inviável… então tem várias metáforas pra entender isso… aí cada pessoa vai ter uma resposta diferente e todas serão verdadeiras, o que muda é o ponto de vista… então reconhecer isso, aceitar isso… e isso vale pra tudo… tudo depende… então qualquer tentativa de unificar a verdade é temerária… mas eu entendo que a gente precisa de alguns parâmetros para viver em sociedade… então a gente precisa de leis, mas essas leis estão sempre sujeitas a serem mudadas, melhoradas… por exemplo, a própria declaração de direitos humanos… será que ela é universal? Depende… quem a fez? Quem a criou? Em que momento? Para quem? Então quando a gente quer falar de verdade a gente sempre precisa fazer outras perguntas… essa verdade é verdade de quem?

| Como é estar no teu corpo? |

…acho que é um eterno cuidar-se e perdoar-se… é todo dia tentar ter amor por si… é perdoar uma trajetória, é cuidar fisicamente do que se come… é cuidar das relações… com quem que se troca energia, quem você escolhe para estar perto de você… então isso é cuidar de si… é uma tentativa de se amar, apesar de tudo… é amar as imperfeiçoes de si mesmo… é perdoar as imperfeições e inclusive até amar as imperfeições… estar consigo é um casamento porque é para o fim da vida, o dia que eu parar de respirar eu vou estar com esse corpo e ele é uma máquina, eu preciso cuidar dela… em todos os sentidos… então o que faço com meu corpo? Que roupa eu coloco? Para onde eu vou? Vou gastar minha energia com o que? Eu acho que tudo isso tem a ver com cuidado, com aceitação… com amor, no fim… é um tentar se amar, sabe?

| E ser mulher o que é? |

Ahhh… então… [suspiros] depende, depende de qual é a sua verdade…

| Ser mulher dói? |

Dói. Dói quando você tira a venda dos olhos… quando você tem a coragem… que eu acho que precisa de coragem para olhar com olhos bem abertos qual é a condição da mulher de hoje, e daí dói. Dói porque você percebe que as mulheres sofrem, apanham, são estupradas, mortas… você percebe que existe uma ideologia muito forte, uma designação de papéis muito estreita… são estruturas que tentam nos canalizar para certos papéis e quem ousar fugir disso vai ser taxada de… louca… antigamente ia para o hospício… [quer dizer] há muito pouco tempo atrás, as mulheres que ousavam agir diferente do que era considerado a norma, eram consideradas malucas e como tal precisavam ser contidas… as mulheres que queriam dar vazão a sua sexualidade, por exemplo, que não queriam esperar o casamento pra fazer sexo, iam pro manicômio, mulheres que falavam, que ousavam enfrentar os homens da sua família, seus irmãos, seus pais, seus maridos, mulheres que não queriam casar…  e isso é logo ali atrás, isso não faz muito tempo… então como também já tem muita coisa que aconteceu para melhorar um pouco a condição das mulheres, às vezes é muito difícil de perceber o que ainda não está de acordo com o que nós mulheres, como um grupo, embora muito diverso, queremos…

| Então, hoje, o que é ser mulher? |

…então, hoje… onde está nosso calcanhar? Onde que o calo aperta? Porque cem anos atrás a gente não podia votar e hoje a gente pode… mas o que a gente não pode hoje? A gente não pode ter ainda tranquilamente a profissão que a gente quiser sem sofrer preconceito, sem ter que responder um milhão de perguntas, sem ter pessoas nos julgando, então não é simples… escolher uma profissão não é simples… existem profissões que são mais fáceis para as mulheres escolherem… eu acho que o calo aperta muito dentro de casa, na divisão das tarefas… o homem fica muito mais tempo sentado na frente do sofá vendo tv e fazendo qualquer outra coisa enquanto a mulher fica ali vendo o que está sujo, bagunçado e fazendo coisas, isso ainda é uma mentalidade muito difícil de mudar… nós mulheres somos muito cobradas para sermos pró-ativas e portanto gerenciar isso e os homens são ensinados a aceitar essa condição… a maternidade também é uma grande prisão para as mulheres de hoje em muitos aspectos… você de fato não tem liberdade pra exercer a maternidade do jeito que você quer, existe uma cartilha, um modo de fazer as coisas muito forte que cai sobre nossas cabeças e se você ousa fazer diferente vai ser julgada, você vai ter que responder infinitas perguntas… então a maternidade é uma grande questão… as mulheres são muito mais responsáveis pelos filhos do que os homens… a parentalidade – pai e mãe – isso aí ainda está muito longe de estar equilibrado… outra coisa que é difícil em ser mulher hoje é poder ter o controle sobre o próprio corpo, poder exercer a sexualidade… o quanto a gente tem essa liberdade?… somos ainda muito corpo para a sociedade, menos ser humano, mais corpo…

| Então se tu puderes colocar em uma frase… o que é ser mulher? |

Ser mulher é lutar com unhas e dentes pela liberdade…

| E a Nicole, quem é? |

…é uma dessas que luta com unhas e dentes pela liberdade dela e de outras, de quantas quiserem, aspirarem a liberdade, eu estou junto… para quem quiser…

| Nicole Spohr entrevistada por Bianca Spohr |


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