Nesses tempos em que n\u00e3o se pode transitar pra l\u00e1 e pra c\u00e1 livremente, tenho refletido sobre algumas viagens que me marcaram. E uma das que est\u00e1 no topo da lista certamente \u00e9 a que fiz em 2014 para Mo\u00e7ambique. Minha pesquisa de doutorado foi sobre direitos humanos na periferia global, ent\u00e3o em outubro de 2014 passei 20 dias neste pa\u00eds que, na \u00e9poca, tinha o terceiro pior IDH – \u00cdndice de Desenvolvimento Humano do mundo (hoje \u00e9 o quinto pior).<\/p>\n\n\n\n

Nada foi muito f\u00e1cil. Quase n\u00e3o havia op\u00e7\u00f5es de voos e hospedagem e as poucas que existiam, eram car\u00edssimas – em d\u00f3lar. Tamb\u00e9m pesava o fato de eu n\u00e3o saber quantas pessoas topariam conversar comigo e quantos dados relevantes eu efetivamente conseguiria coletar. Eu, mulher branca de classe m\u00e9dia, me vi em um pa\u00eds muito pobre e quente (40 graus na sombra na primavera), com infra-estrutura prec\u00e1ria e economia baseada na agricultura. Sei que existem partes do Brasil em situa\u00e7\u00e3o pior ou igual, mas eu nunca havia estado nesses lugares. L\u00e1, em meio a uma popula\u00e7\u00e3o majoritariamente negra, eu era minoria. Mas acabei percebendo que isso \u00e0s vezes era uma vantagem – achavam que eu era portuguesa – e eu sempre fui muito bem tratada. Coletar os dados n\u00e3o foi moleza, mas consegui.<\/p>\n\n\n\n

Para al\u00e9m da pesquisa, o que me tocou muito foram a cultura e arte locais. Andar pelas ruas de Maputo significa ter contato com os bel\u00edssimos tecidos mo\u00e7ambicanos a todo instante. <\/p>\n\n\n\n

Esses tecidos, cheios de padr\u00f5es, cores e texturas s\u00e3o as famosas capulanas, patrim\u00f4nio nacional. S\u00e3o usadas, especialmente pelas mulheres, para muitos fins. <\/s><\/p>\n\n\n\n

Como saia, carteira, len\u00e7o na cabe\u00e7a, para carregar crian\u00e7as junto ao corpo, transportar marmitas, como toalha de mesa, cortina e tudo o mais que a imagina\u00e7\u00e3o permitir. Vi capulanas at\u00e9 como forra\u00e7\u00e3o de bancos de tuk tuk – sim, \u00e9 claro que eu andei um monte de tuk tuk pela cidade!<\/p>\n\n\n\n

As feiras de artesanato tamb\u00e9m me encantavam. Telas, esculturas, brinquedos, roupas, bolsas, cestarias, sapatos e diversos outros itens eram expostos a cada esquina. Ao entrar nas lojas de capulanas, eu simplesmente n\u00e3o conseguia mais sair – as estampas eram t\u00e3o incr\u00edveis que era dif\u00edcil escolher. <\/p>\n\n\n\n

Um dos temas que eu estava estudando, \u00e0 \u00e9poca, tratava da constru\u00e7\u00e3o de subalternidade de povos origin\u00e1rios por povos que se consideram superiores a estes. Na minha pesquisa, percebi que brasileiros e brasileiras se consideravam mais evolu\u00eddos e civilizados do que mo\u00e7ambicanos e mo\u00e7ambicanas. Eram diversas as situa\u00e7\u00f5es que esta suposta subalternidade aparecia. <\/p>\n\n\n\n

Mas foi s\u00f3 no finzinho do doutorado que entendi, a partir de leituras da intelectual indiana Gayatri Spivak que, se os homens de Mo\u00e7ambique s\u00e3o oprimidos por conta de sua ra\u00e7a, as mulheres mo\u00e7ambicanas s\u00e3o oprimidas por causa de sua ra\u00e7a, mas tamb\u00e9m por seu g\u00eanero, ou seja, elas sofrem uma dupla opress\u00e3o. Foi o in\u00edcio na minha trajet\u00f3ria no feminismo.<\/s><\/p>\n\n\n\n

Apesar disso j\u00e1 estar claro para mim h\u00e1 alguns anos, foi s\u00f3 recentemente que entendi a for\u00e7a das mulheres mo\u00e7ambicanas e a import\u00e2ncia da capulana neste processo de afirmar e reafirmar seu poder. Elas s\u00e3o as principais chefes de fam\u00edlia, plantam com os filhos nas costas e n\u00e3o deixam de lutar diante de injusti\u00e7as. S\u00e3o elas que utilizam as capulanas no dia-a-dia e assim transformaram o tecido em um elemento da cultura nacional. Por meio da hist\u00f3ria oral, em geral, s\u00e3o as mulheres que passam a frente as hist\u00f3rias sobre a import\u00e2ncia da capulana, que chegou em Mo\u00e7ambique a partir de trocas comerciais com a \u00c1sia e j\u00e1 foi utilizada como moeda de troca por monarcas. Existem capulanas que s\u00e3o passadas de m\u00e3es para filhas por gera\u00e7\u00f5es e usadas apenas em momentos importantes como casamentos, formaturas, festas e funerais. Teve at\u00e9 capulana comemorativa da independ\u00eancia de Mo\u00e7ambique em 1975!<\/p>\n\n\n\n

Sou muito grata a este pa\u00eds e a todas as pessoas que me acolheram e que toparam dividir suas hist\u00f3rias comigo para que minha tese de doutorado fosse poss\u00edvel. L\u00e1, aprendi tantas coisas que nem sei. Eu jamais fui a mesma ap\u00f3s essa experi\u00eancia t\u00e3o marcante, pois tive o privil\u00e9gio de aprender tamb\u00e9m sobre quem eu sou. <\/p>\n\n\n\n

Quer saber mais sobre a capulana? Sugiro que voc\u00ea assista o document\u00e1rio Na dobra da capulana<\/a>, de Camilo de Souza e Isabel Noronha, de 30 minutos. Nele, s\u00e3o contadas muitas hist\u00f3rias relacionadas \u00e0s capulanas, como sua import\u00e2ncia nas diversas fases da vida de uma mulher, como nascimento dos seus filhos, casamento, formatura de um ente querido e at\u00e9 mesmo sobre a liga\u00e7\u00e3o dos tecidos com a espiritualidade. Na “dobra da capulana” \u00e9 onde as mulheres mo\u00e7ambicanas costumam guardar seu dinheiro. Termino esse texto com as palavras de uma das participantes do document\u00e1rio:<\/p>\n\n\n\n

“Gosto que a capulana esteja sempre ao meu lado porque \u00e9 a capulana que me faz mulher e nada posso fazer sem amarrar uma capulana”. <\/s><\/p>\n\n\n\n

Bel\u00edssimo, n\u00e3o?<\/p>\n\n\n\n

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