Tentavam justificar os seus modos, as suas escolhas. Falavam de como criavam os seus filhos artificialmente, como que sa\u00eddos de um manual, com a boca semi-cerrada ou bem aberta, qualquer coisa teatral, para n\u00e3o transparecer os descompassos entre o que diziam e o que sangrava. <\/p>\n\n\n\n

De tudo o que haviam lido, sabiam como deveria ser. Era imperativo n\u00e3o se deixar abater, n\u00e3o falar de si, mas apenas do que se poderia ouvir. Que terr\u00edveis eram aquelas reuni\u00f5es. Na err\u00e2ncia do comportamento dos filhos – que gritavam pedindo aten\u00e7\u00e3o, pulavam onde n\u00e3o era para pular, mostravam que ainda n\u00e3o sabiam falar e portar-se \u00e0 maneira ensinada – apareciam suas sombras, seus medos e seus terrores da cria\u00e7\u00e3o, repetidos e reificados naqueles pequenos seres. <\/p>\n\n\n\n

“Geralmente dorme bem, \u00e9 que hoje tivemos um dia agitado”, “Na escola responde a todas as consignas, mas em casa quer chamar a aten\u00e7\u00e3o”, “No in\u00edcio fica t\u00edmido, mas depois n\u00e3o quer ir embora”. Todo o tempo se explicavam, como que tentando expurgar o peso da pr\u00f3pria maternidade e o fardo que era educar uma crian\u00e7a. Sentiam que, se n\u00e3o falassem por eles, o olhar julgador dos outros as massacraria, ent\u00e3o antecipavam a cr\u00edtica: “N\u00e3o sei mais o que fazer, tento de tudo, mas ela \u00e9 imposs\u00edvel”. <\/p>\n\n\n\n

Buscavam ao mesmo tempo a aprova\u00e7\u00e3o e a compaix\u00e3o, j\u00e1 que os outros, os reais e os inventados, certamente pensavam: “Esta n\u00e3o deveria ter sido m\u00e3e”, “Quando eu tiver filho n\u00e3o vou ser t\u00e3o permissiva”, “Comigo n\u00e3o vai ser assim”, “\u00c9 explicar uma vez e eles aprendem”, “N\u00e3o d\u00e1 pra dar corda”, “Na minha \u00e9poca fizeram assim e aqui estou”. Todas essas falas permeavam as suas cabe\u00e7as desde a gravidez e, a cada movimento em falso dos filhos reais, as frases tomavam a forma de pequenos monstros infantis: grit\u00f5es, bagunceiros, s\u00e1dicos sagazes, perversos do enredo adulto. <\/p>\n\n\n\n

Que terr\u00edveis eram aquelas reuni\u00f5es. Na aparente inf\u00e2ncia descontrolada dos filhos, vinha \u00e0 tona a ang\u00fastia dos adultos e suas pr\u00f3prias inf\u00e2ncias revividas, as feridas abertas, a imagem dos pais refletida, seus dilemas renascidos, a comprova\u00e7\u00e3o de que fazer diferente era muito mais uma vontade que um acontecimento. <\/p>\n\n\n\n

\u00c0 exaust\u00e3o tentavam n\u00e3o aparentar o que era, o que transmitiam sem querer, o que n\u00e3o puderam ler nos livros. Inutilmente. A todo tempo os filhos faziam quest\u00e3o de desvelar e deixar expostas a sua humanidade e as cicatrizes marcadas desde sempre. Naquilo que escapa, supera, atravessa e se interp\u00f5e entre pais e filhos, sentiam o insuport\u00e1vel da pr\u00f3pria vida. Em cada atitude espont\u00e2nea, os filhos condensavam as suas hist\u00f3rias, reduzidas \u00e0queles momentos de horror. Que terr\u00edveis eram aquelas reuni\u00f5es.<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

Tentavam justificar os seus modos, as suas escolhas. Falavam de como criavam os seus filhos artificialmente, como que sa\u00eddos de um manual, com a boca semi-cerrada ou bem aberta, qualquer coisa teatral, para n\u00e3o transparecer os descompassos entre o que diziam e o que sangrava. De tudo o que haviam lido, sabiam como deveria ser. […]<\/p>\n","protected":false},"author":65,"featured_media":7470,"comment_status":"open","ping_status":"open","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":[],"categories":[207],"tags":[103,34],"_links":{"self":[{"href":"https:\/\/falafrida.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/4728"}],"collection":[{"href":"https:\/\/falafrida.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/falafrida.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/falafrida.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/users\/65"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/falafrida.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=4728"}],"version-history":[{"count":3,"href":"https:\/\/falafrida.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/4728\/revisions"}],"predecessor-version":[{"id":7472,"href":"https:\/\/falafrida.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/4728\/revisions\/7472"}],"wp:featuredmedia":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/falafrida.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/media\/7470"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/falafrida.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=4728"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/falafrida.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=4728"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/falafrida.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=4728"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}