<\/p>\n\n\n\n

Ela chega de um jeitinho silencioso. Sorrateira. A nuca descoberta pelo chanelzinho. A jugular ali pulsando, pronta pro abate. Mas a presa aqui n\u00e3o \u00e9 ela. Sou eu. Sei disso pelo jeito como os seus olhos felinos me olham. De baixo pra cima. N\u00e3o s\u00f3 porque ela \u00e9 menor do que eu. Porque \u00e9 o \u00fanico jeito que ela sabe olhar pras coisas, sempre de baixo pra cima, da terra pro c\u00e9u – ela crava as unhas na carne e a escala at\u00e9 alcan\u00e7ar a porta do para\u00edso. Ela bate na porta. Ela bate.<\/p>\n\n\n\n

Abro com a boca roxa de vinho. Das ta\u00e7as que tomei antes dela chegar. Sorrio um sorriso manchado. Ela mostra dentes brancos e pontiagudos. Sorriso ou amea\u00e7a, n\u00e3o sei dizer. N\u00e3o sei dizer muita coisa. Sempre perco as palavras. Sempre perco tudo. A hora. As chaves. Os amores. Por isso ando de bolsos vazios. Pra n\u00e3o deixar meus peda\u00e7os por a\u00ed. Sou tantas perdas. Por isso vivo assustada. Com medo de perder at\u00e9 os restos.<\/p>\n\n\n\n

Mas ela. Ela me faz querer dar o pouco que tenho. Talvez. Se eu jogar minhas migalhas… Ela segue o meu rastro?, n\u00e3o sei dizer.<\/p>\n\n\n\n

Ela n\u00e3o \u00e9 uma gatinha domesticada. \u00c9 selvagem. D\u00e1 pra ver no olhar de bicho dela. Olhar que n\u00e3o se enjaula. D\u00e1 pra ver no jeito como ela se move. Deslizando.<\/del> Sempre em <\/s>curvas.<\/del><\/strong><\/p>\n\n\n\n

Enquanto eu vivo tentando andar em linha reta. Como uma equilibrista, sustentando o peso da responsabilidade, da exist\u00eancia, do caralho todo. Por isso caio. Caio sempre. Por isso tantos roxos na minha pele, que ela repara e pergunta o que foi que aconteceu. A vida, respondo, a vida me aconteceu. Ela me diz que a retid\u00e3o n\u00e3o \u00e9 natural. Que tudo na natureza se curva. Eu me curvo sobre ela. Quero ador\u00e1-la como os eg\u00edpcios adoravam os gatos. Eu que nunca acreditei muito em deus, de repente me vejo diante de algo t\u00e3o profano que sagrado. Ela amolece dentro do meu abra\u00e7o. Eu ao contr\u00e1rio petrifico. N\u00e3o sei o que fazer. Nunca cheguei t\u00e3o perto do divino. E se eu macular sua brancura com minhas m\u00e3os \u00e1vidas? E se eu deixar na sua pele o cheiro de cigarro dos meus dedos? O abra\u00e7o foi um impulso impensado. Ela percebe meu desconcerto. Ri. Gra\u00e7a ou chacota, n\u00e3o sei dizer. Penso demais. Sempre penso demais. Ela interrompe o fluxo infernal dos meus pensamentos com um ato de miseric\u00f3rdia –  me beija. Seus l\u00e1bios s\u00e3o t\u00e3o moles – amole\u00e7o com ela. Ela se curva sobre mim. Me desce do mundo das ideias. Me puxa pra terra. Pra carne. Pro ch\u00e3o. Sem tirar a boca da minha. Nos engalfinhamos no tapete, as pernas entrela\u00e7as. Quando ela pressiona a perna entre as minhas me sinto latejar sob sua press\u00e3o, pingando na calcinha.<\/p>\n\n\n\n

\u00a0As roupas v\u00e3o caindo com mais naturalidade do que eu jamais ca\u00ed. Quando me dou conta estamos as duas nuas e observo seu corpinho pequeno sobre o meu. <\/s><\/del><\/p>\n\n\n\n

Os seios mi\u00fados. A curvinha da barriga. O umbigo fundo. Os pelos. Quando percebo o gatinho tatuado no bra\u00e7o lhe digo que isso \u00e9 uma redund\u00e2ncia. Ela me conta que na Inquisi\u00e7\u00e3o os gatos foram queimados junto com as bruxas. Fico abismada. Que feiti\u00e7o \u00e9 esse que ela lan\u00e7ou sobre mim?<\/p>\n\n\n\n

Ela me olha de baixo pra cima mais uma vez. Me lambe os l\u00e1bios e soprando na minha boca seu h\u00e1lito quente. Me lambe as bochechas. O pesco\u00e7o. Crava os dentinhos. Me arrepio inteira. Meu deus, me sinto inteira. Dos p\u00e9s \u00e0 cabe\u00e7a, sinto meu corpo todo de uma vez s\u00f3. <\/s><\/p>\n\n\n\n

Como se eu n\u00e3o fosse s\u00f3 restos. Como se eu fosse qualquer coisa completa. Ser\u00e1 que era ela que faltava? Ser\u00e1 que \u00e9 ela a cola que junta meus peda\u00e7os rotos?<\/p>\n\n\n\n

Me contor\u00e7o com o banho de gato que ela me d\u00e1, amando o cheiro da sua saliva na minha pele, impregnando os meus poros, penetrando minha casca dura. Ela me ensina a amolecer. Quando ela me lambe ali no meio das pernas, a l\u00edngua abrasiva e certeira, perco tudo a que me agarro na vida: raz\u00e3o, l\u00f3gica, f\u00e9, fome, o pouco deus que tenho. Sou bicho.<\/p>\n\n\n\n

 Dizem que os gatos n\u00e3o se relacionam com a apar\u00eancia, mas com o interior das coisas. Que eles conseguem enxergar as inten\u00e7\u00f5es ocultas dos gestos. Ser\u00e1 que ela enxerga algo no meu avesso? Ser\u00e1 que sou mais do que esse saco de ossos que julgo ser? Ser\u00e1 que o amor \u00e9 isso? Essa coisa que faz a gente acreditar que somos algo que vale a pena?<\/p>\n\n\n\n

Dizem que os gatos se relacionam com auras, energias, fantasmas. Por isso fitam o nada e veem alguma coisa. Quando ela me olha dentro dos olhos, o que ser\u00e1 que ela v\u00ea? Algo al\u00e9m de um buraco vazio e os vultos do meu medo? Isso tudo me passa pela cabe\u00e7a enquanto ela me chupa selvagem e concentrada no ponto sagrado do clit\u00f3ris, e por dentro da minha coluna passa um vento frio que sobe at\u00e9 implodir meus pensamentos. N\u00e3o penso mais. Ela me calou. Ela me deu o sil\u00eancio. Ent\u00e3o ela fica cara a cara comigo e me lambe os olhos. O que voc\u00ea v\u00ea?, pergunto. O que voc\u00ea v\u00ea?. Ela mia. Ela mia bem baixinho no meu ouvido. Vejo possibilidades, ela responde. Vejo sempre possibilidades. De saltar por cima das coisas. E alcan\u00e7ar o inalcan\u00e7\u00e1vel.<\/p>\n\n\n\n

Essas palavras quase me fazem gozar. De repente me vem uma for\u00e7a quente l\u00e1 de dentro. Num golpe imprevis\u00edvel salto por cima dela e a deito de frente pra mim segurando seus punhos por cima da cabe\u00e7a. Ela ronrona. Come\u00e7o a lamb\u00ea-la. Ela mia mais. Lambo seu corpo como se cada got\u00edcula do seu suor agridoce me alimentasse, chupo seus mamilos empinados, bebo o leite que escorre do buraquinho macio da sua buceta, num af\u00e3 sedento que at\u00e9 ent\u00e3o desconhecia.<\/p>\n\n\n\n

Ela vai me dizendo o que fazer e obede\u00e7o como uma aluna aplicada, como uma serva, uma adoradora, tudo que quero \u00e9 aprender a deslizar pela vida como ela desliza, e treino o deslizar nas curvas do seu corpo mi\u00fado, que se arqueia e se espregui\u00e7a como se a gravidade n\u00e3o pesasse e o mundo n\u00e3o fosse essa realidade dura, como a vida fosse um playground e n\u00f3s estiv\u00e9ssemos aqui pra brincar. <\/s><\/p>\n\n\n\n

Ela goza muitas vezes sucessivamente, e sempre que goza me arrasta junto com ela, \u00e9 como se seu gozo despertasse o meu, encaixamos as pernas numa tesoura, a temperatura de n\u00f3s duas \u00e9 suficiente pra transformar nosso sangue em lava, ela se esfrega em mim como boa felina e fico em d\u00favida se j\u00e1 parei de gozar ou se estou gozando continuamente, vou alavancada pelos seus miados e gemidos, sentindo no ventre algo que agitar numa espiral at\u00e9 explodir. Talvez se eu aprender essa espiral eu aprenda a andar em curvas. Descanso a cabe\u00e7a na sua virilha, respirando seu cheirinho de gata no cio. Dizem que os gatos percebem o invis\u00edvel porque eles t\u00eam muito quartzo na gl\u00e2ndula pineal. N\u00e3o sei o que isso significa. Dizem que eles limpam a energia ruim do lugar. Fato que o ar est\u00e1 mais calmo. E meu corpo, ainda que carregando essa grossa camada de saliva que ela deixou sobre minha pele, mais leve e mais feliz. N\u00e3o sei se dou cr\u00e9dito ao quartzo ou aos orgasmos. O orgasmo limpa a descren\u00e7a do corpo desacreditado.  <\/p>\n\n\n\n

Quando ela vai embora batendo a porta sem fazer barulho, fico nua fumando um baseado na janela com a solid\u00e3o de companhia.  Observo-a deslizando pela rua l\u00e1 embaixo. N\u00e3o fa\u00e7o ideia se ela vai encontrar o caminho de volta. Ela n\u00e3o \u00e9 mesmo uma gatinha domesticada. Entendi a completude da sua selvageria. E os gatos, da rua ou de casa, enfrentam a solid\u00e3o de forma muito mais corajosa e destemida do que n\u00f3s, pedintes, seres humanos. Eles s\u00e3o autossuficientes – at\u00e9 na higiene. Eles se bastam. E n\u00f3s? N\u00f3s inventamos coisas s\u00f3 pra depender cada vez mais delas. Talvez. Talvez. Talvez… Ela tenha vindo pra me ensinar a me bastar tamb\u00e9m.<\/p>\n\n\n\n

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