H\u00e1 alguns meses viajo o estado de S\u00e3o Paulo realizando o Projeto T\u00e1 na Hora<\/a>, realizado pelo Instituto Liberta. Percorro cidades de interior, \u00e1reas rurais e periferias realizando oficinas com estudantes de 12 a 17 anos, em escolas p\u00fablicas, sobre abuso e explora\u00e7\u00e3o sexual. Para isso, uso teatro, m\u00fasica, rap, funk, poesia, e todo tipo de express\u00e3o art\u00edstica que os pr\u00f3prios alunos e alunas se identificarem. Vinte e uma escolas participam do projeto, mais de 300 estudantes. Nos reunimos sempre em roda, instigo debates sobre as ra\u00edzes das viol\u00eancias de g\u00eanero, estere\u00f3tipos e a viol\u00eancia sexual.<\/p>\n

Os alunos entrevistam seus pais, vizinhos e professores sobre o que entendem como explora\u00e7\u00e3o sexual infantil. A grande maioria n\u00e3o sabe responder a pergunta. Se recusam a responder, culpam a v\u00edtima ou dizem coisas como “se dois n\u00e3o querem, um n\u00e3o faz. N\u00e3o acredito nessa hist\u00f3ria de abuso”. Os estudantes compartilham o que sentem ao ouvirem respostas sexistas de seus pr\u00f3prios familiares.
\nSentem raiva e inconformismo. \u00c9 neste momento que entro na conversa e trago a reflex\u00e3o que move o projeto: como pegamos a raiva que voc\u00eas est\u00e3o sentindo e a transformamos em a\u00e7\u00e3o para mudar a forma como essas pessoas pensam e tratam a v\u00edtima?
\nA partir da\u00ed, apresento um desafio aos estudantes: a turma precisa criar um projeto para conscientizar o maior n\u00famero de pessoas de seus bairros e cidades sobre a tem\u00e1tica de viol\u00eancia sexual, em especial, a explora\u00e7\u00e3o sexual infantil, tema pouqu\u00edssimo discutido.<\/p>\n

A explora\u00e7\u00e3o sexual ocorre quando crian\u00e7as e adolescentes recebem dinheiro, comida, drogas e at\u00e9 mesmo um telefone celular em troca de sexo. Ou seja, \u00e9 um ato que envolve uma troca e por isso, a v\u00edtima de explora\u00e7\u00e3o n\u00e3o \u00e9 vista pela sociedade como v\u00edtima e sim como “prostituta”. Mas estamos falando de meninas de 12 anos que transam com homens em troca de R$ 10,00.
\nAs oficinas envolvem atividades de reflex\u00e3o, autoconhecimento e a pr\u00e1tica da empatia para com a v\u00edtima. Os alunos discutem pol\u00edticas p\u00fablicas, s\u00e3o provocados a conhecerem as redes de atendimento de suas cidades e checarem se os servi\u00e7os de atendimento \u00e0s v\u00edtimas est\u00e3o de fato funcionando. Alunas e alunos marcam reuni\u00f5es com conselheiros tutelares, assistentes sociais, m\u00e9dicos e at\u00e9 o prefeito! Em Gabriel Monteiro, uma cidade de 2500 habitantes, os alunos bateram na porta do prefeito para perguntar “o que a cidade tem feito para enfrentar a explora\u00e7\u00e3o sexual?”. O prefeito n\u00e3o conhecia o termo, e aprendeu naquele dia, atrav\u00e9s dos estudantes da \u00fanica escola da cidade o que \u00e9 a explora\u00e7\u00e3o sexual e como pode estar presente em sua cidade. O prefeito se comprometeu a tomar atitudes sobre o assunto (tudo gravado pelos alunos e alunas em um v\u00eddeo produzido por eles!).\u00a0Na mesma cidade, a turma de 37 alunos produziu um v\u00eddeo<\/a> exibido em televisores durante a tradicional quermesse realizada na cidade que re\u00fane mais de 10.000 pessoas e pode ser foco para a explora\u00e7\u00e3o sexual por parte de turistas.<\/p>\n

Em outras cidades, as alunas e alunos est\u00e3o realizando rodas de conversa nas v\u00e1rias escolas p\u00fablicas e particulares, com outros estudantes (crian\u00e7as e adolescentes) sobre a viol\u00eancia sexual. Os pr\u00f3prios estudantes est\u00e3o dando capacita\u00e7\u00e3o para os professores de suas cidades sobre o tema!\u00a0Os alunos tamb\u00e9m grafitaram os muros de suas escolas e das cidades com mensagens e desenhos (feitos por eles) para alertar sobre o tema e incentivar as v\u00edtimas a pedirem por ajuda.<\/p>\n

Em Ribeir\u00e3o Preto, enquanto as alunas ainda terminavam o grafite no muro da escola que d\u00e1 para uma rua com muito movimento na periferia da cidade, uma mulher para em frente ao muro, l\u00ea as mensagens e muito emocionada diz para as alunas “eu estudei nessa escola e nunca tive a oportunidade de falar sobre as viol\u00eancias que sofria como menina e hoje sofro como mulher”.<\/p>\n

O projeto t\u00eam um objetivo principal: tornar os estudantes multiplicadores do conhecimento, para que eles levem as reflex\u00f5es feitas nas oficinas para suas m\u00e3es, pais, av\u00f3s, para amigas v\u00edtimas de viol\u00eancia, para professores que n\u00e3o sabem como ajudar alunas e alunos v\u00edtimas de viol\u00eancia sexual.
\nEntretanto, o projeto n\u00e3o atua somente na preven\u00e7\u00e3o da viol\u00eancia. Muitas alunas acabam entendendo que, o que sofreram durante a inf\u00e2ncia, \u00e9 um tipo de viol\u00eancia. Outras sentem pela primeira vez que podem falar sobre o assunto. Muitas alunas me procuram para conversar, meninas que sofreram ou ainda sofrem abuso sexual h\u00e1 anos e nunca pediram ajuda. Eu as ou\u00e7o, as acolho, relembro de sua for\u00e7a e coragem. Relembro que elas n\u00e3o est\u00e3o sozinhas e me dedico a, junto das educadoras da pr\u00f3pria escola, buscar servi\u00e7os de atendimento e acolhimento das v\u00edtimas. Vejo o al\u00edvio no rosto de cada uma ao conseguir me contar o que sofreram e entenderem que n\u00e3o s\u00e3o culpadas. Vejo o brilho nos olhos delas ao sentirem que elas, atrav\u00e9s do projeto, poder\u00e3o ajudar outras meninas que tamb\u00e9m sofreram viol\u00eancias.
\nSemana passada, faz\u00edamos grafites pela escola, quando uma aluna pega um spray e grafita “sendo ajudada da maneira correta descobri meu poder e minha liberdade”. S\u00e3o momentos como este que me fazem viajar a cada dia para uma cidade, sentar em rodas com 35 estudantes, e encarar o desafio enorme que \u00e9 falar sobre viol\u00eancia sexual nas escolas.\u00a0
\nVoc\u00ea deve estar se perguntando como tudo isso come\u00e7ou. Quando crian\u00e7a, sofri crises de p\u00e2nico de depress\u00e3o causadas por uma viol\u00eancia sofrida anteriormente. Com 11 anos, ouvi de uma coordenadora da escola que eu “estava louca e aquilo era frescura”. N\u00e3o consegui botar os p\u00e9s em uma escola novamente durante 2 anos. Com 13 anos, em uma nova escola, uma educadora teve uma abordagem comigo totalmente diferente, ela me disse “Amanda, sabe, eu tamb\u00e9m tenho crises de p\u00e2nico. Sei como \u00e9 dif\u00edcil, mas estou com voc\u00ea e juntas vamos pensar em formas de voc\u00ea se sentir confort\u00e1vel”. Naquele momento, entendi o significado da empatia e do acolhimento. Hoje, \u00e9 esse sentimento que busco transmitir aos meus alunos.<\/p>\n

Comecei a dar oficinas em escolas p\u00fablicas sobre viol\u00eancia contra a mulher ainda na faculdade at\u00e9 que nesse ano, a presidente do Instituto Liberta me convidou para criar uma metodologia para falar sobre viol\u00eancia sexual com adolescentes e assim nasceu o Projeto T\u00e1 na Hora. Al\u00e9m das escolas, tamb\u00e9m dou aulas na Academia de Pol\u00edcia de S\u00e3o Paulo, em que provoco delegados e delegadas de pol\u00edcia (jovens e mais velhos!) a refletirem sobre como deveriam atender v\u00edtimas de viol\u00eancia dom\u00e9stica, com cuidado e empatia, entendendo que elas est\u00e3o em um ciclo de viol\u00eancia e de depend\u00eancia emocional e financeira de seus agressoras. Em grupo, os profissionais fazem exerc\u00edcios para constru\u00edrem as melhores formas para atender e encaminhar mulheres v\u00edtimas de viol\u00eancia de g\u00eanero. Tamb\u00e9m realizo as oficinas com profissionais da sa\u00fade em postos de sa\u00fade em \u00e1reas de alta vulnerabilidade. Tudo isso tem um objetivo central: diminuir, de verdade, a viol\u00eancia contra a mulher no Brasil.<\/p>\n

Quero muito que educadoras e educadores possam se inspirar e implementar a\u00e7\u00f5es desse tipo em suas comunidades. Meu sonho \u00e9 que o T\u00e1 na Hora seja uma pol\u00edtica p\u00fablica nacional, impactando todos os alunos e alunas brasileiros. E lutarei para alcan\u00e7\u00e1-lo!<\/p>\n

*Para mais informa\u00e7\u00f5es sobre o projeto acesse no Instagram\u00a0@amandasadalla<\/a> e @libertainstituto<\/a>.<\/p>\n

**Esta \u00e9 uma reportagem sobre projeto:<\/p>\n

Viol\u00eancia dom\u00e9stica n\u00e3o \u00e9 caso exclusivo de pol\u00edcia, afirma pesquisadora<\/a><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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