Reconhecer privil\u00e9gios \u00e9 uma pauta quente da atualidade. Mas o que \u00e9 isso? Ser\u00e1 que temos que nos sentir culpad@s por termos nascido na fam\u00edlia em que nascemos e pelas oportunidades que tivemos? J\u00e1 tem cota disso e daquilo, j\u00e1 tivemos mulher presidente e homossexual na pol\u00edtica. N\u00e3o d\u00e1 pra deixar tudo do jeito que t\u00e1?<\/p>\n<\/div>\n
N\u00e3o, n\u00e3o d\u00e1.\u00a0Vamos fazer um teste?\u00a0Voc\u00ea pode demonstrar afeto por seu\/sua parceir@ em p\u00fablico sem medo de ser violentad@?\u00a0Voc\u00ea encontra cosm\u00e9ticos apropriados para seu tom de pele com facilidade?\u00a0Suas celebra\u00e7\u00f5es religiosas s\u00e3o feriados nacionais?\u00a0Voc\u00ea j\u00e1 teve um trabalho oferecido por causa de uma amizade ou membro da fam\u00edlia?<\/p>\n
Se voc\u00ea respondeu sim a qualquer uma destas perguntas, voc\u00ea \u00e9 uma pessoa privilegiada. Eu poderia passar o dia fazendo perguntas como estas. O privil\u00e9gio pode se referir \u00e0 sua orienta\u00e7\u00e3o sexual, ra\u00e7a, religi\u00e3o, classe social, peso, capacidade f\u00edsica, entre outros.<\/p>\n
Mas ningu\u00e9m gosta de pensar que tem alguma vantagem especial na vida, certo? Parece t\u00e3o injusto<\/em>. \u00c9 porque \u00e9 mesmo. Muito injusto. Mas n\u00f3s privilegiad@s gostamos de pensar que estamos onde estamos por pura meritocracia. S\u00f3 que n\u00e3o.<\/strong><\/p>\n Geralmente as pessoas que exercem algum tipo de poder sobre outras – sejam elas chefes, empregador@s, especialistas em algum assunto, etc. – costumam nutrir a chamada \u201ccegueira da vantagem\u201d. \u00c9 quando a pessoa n\u00e3o se sente privilegiada. Ela acha que tudo o que conquistou – uma carreira de sucesso, um sal\u00e1rio bacana, um t\u00edtulo de doutor – foi por causa de seu esfor\u00e7o pessoal, o que n\u00e3o tem nada a ver com sua cor de pele, g\u00eanero ou classe social. Bad news<\/em> pra voc\u00ea: esses recortes t\u00eam tudo a ver.<\/p>\n Vou usar o meu exemplo pra ilustrar: sou uma mulher branca, magra, alta, meus cabelos s\u00e3o lisos e meus olhos s\u00e3o claros – em outras palavras, estou totalmente dentro do padr\u00e3o de beleza atual e tenho ainda tra\u00e7os considerados \u201ceuropeus\u201d.\u00a0 Como se isso j\u00e1 n\u00e3o trouxesse vantagens suficientes no Brasil, quando morei na Inglaterra, circulei tranquilamente por todos os lugares que quis – universidades, museus, restaurantes, parques, lojas. N\u00e3o era incomum ver pessoas parecidas comigo nesses lugares. As pessoas inclusive duvidavam do fato de eu ser brasileira – achavam que eu era alem\u00e3, su\u00ed\u00e7a, francesa, polonesa, mas nunca brasileira. Se minha apar\u00eancia contribuiu para o fato de eu ter conclu\u00eddo o doutorado aos 29 anos? Provavelmente sim. Raras foram \u00e0s vezes que eu ou outras pessoas duvidaram que aquele lugar – o do conhecimento, da pesquisa, da academia – poderia ou deveria ser meu.<\/p>\n Mas e se eu fosse uma mulher negra, o que teria sido diferente? Ser\u00e1 que eu teria conseguido estudar nos col\u00e9gios privados que estudei? Ser\u00e1 que teria frequentado uma universidade p\u00fablica de excelente qualidade? Ser\u00e1 que teria sido incentivada – como fui – a seguir a carreira de pesquisa? <\/strong><\/p>\n Ser\u00e1 que se eu nunca tivesse visto outra mulher negra na ci\u00eancia, eu consideraria que aquele lugar poderia ser meu? Ser\u00e1 que eu teria conseguido todas as bolsas necess\u00e1rias para fazer mestrado e doutorado em S\u00e3o Paulo em uma das melhores funda\u00e7\u00f5es do pa\u00eds? Jamais terei a resposta exata para todas essas perguntas, mas \u00e9 prov\u00e1vel que para muitas delas, esta seja um n\u00e3o. Pra continuarmos essa reflex\u00e3o, \u00a0trago o caso de uma mulher negra na academia. Grada Kilomba \u00e9 uma mulher incr\u00edvel: escritora, artista, pesquisadora, etc. etc. Ela \u00e9 portuguesa e tem pele negra. E isso muda tudo. No livro Plantation memories (sem tradu\u00e7\u00e3o para o Brasil), ela conta a saga para conseguir acessar a Free University of Berlin para fazer doutorado (tradu\u00e7\u00e3o livre):<\/p>\n “Eu lembro do processo de matr\u00edcula na universidade para meu projeto de doutorado como um momento de dor. Lembro como a lista de documentos requeridos para a matr\u00edcula mudava cada vez que o processo parecia conclu\u00eddo. Me pediam novos certificados que nem haviam sido mencionados anteriormente. A coleta de tais documentos consumiu bastante tempo e dinheiro, ir e vir constantes, o envio de faxes, requerimento de documentos, tradu\u00e7\u00e3o, autentica\u00e7\u00e3o, etc. Ao final, me foi dito que nenhum deles era verdadeiramente necess\u00e1rio, apenas um exame da l\u00edngua alem\u00e3. Este aconteceria dois dias depois. Era a primeira vez que algu\u00e9m mencionava esta necessidade para a matr\u00edcula no doutorado. No dia da prova, a tens\u00e3o era grotesca. O exame determinaria quem se tornaria um estudante e permaneceria na universidade, e quem n\u00e3o poderia. Quando eu finalmente consegui a \u00faltima reuni\u00e3o com a diretora do departamento de matr\u00edcula, ela sentou na minha frente, com meus documentos em m\u00e3os, e perguntou se eu realmente tinha certeza de que gostaria de me matricular como aluna de PhD. Ela explicou que eu n\u00e3o precisava, que poderia considerar a possibilidade de pesquisar e escrever a tese \u201cem casa\u201d. Ela estava me pedindo para permanecer \u201cfora das estruturas da universidade\u201d. Eu estava furiosa e exausta. Quantos obst\u00e1culos eu teria que enfrentar? Quem tem a permiss\u00e3o para produzir conhecimento? Como minha matr\u00edcula levou tanto tempo e eu ainda n\u00e3o possu\u00eda o cart\u00e3o da universidade, meu mentor escreveu uma carta dizendo que eu era uma aluna de doutorado. Na primeira vez que fui \u00e0 biblioteca, fui chamada por uma mulher branca, que falou em voz alta: \u2018Voc\u00ea n\u00e3o \u00e9 daqui, n\u00e9? A biblioteca \u00e9 apenas para estudantes da universidade\u2019. Perplexa, eu parei. Entre dezenas de outros estudantes brancos circulando no recinto, eu fui a \u00fanica a ser parada na entrada. Meu corpo n\u00e3o foi lido como um corpo acad\u00eamico. Os alunos da universidade a que ela estava se referindo era os corpos brancos. Em seus olhos, aqueles eram corpos acad\u00eamicos, corpos no lugar, corpos em casa\u201d.<\/p>\n Deu pra ter uma ideia do que estou falando?<\/p>\n E se, depois de negar por um tempo, algu\u00e9m enfim reconhecer que tem privil\u00e9gios, o que fazer? Cortar os pulsos e se jogar da ponte de vergonha e culpa? N\u00e3o precisa ir t\u00e3o longe. Em primeiro lugar, \u00e9 preciso falar sobre o assunto. Em casa, no trabalho, na escola. Ser humilde. Entender suas vantagens. Estudar, pesquisar, trazer refer\u00eancias produzidas por pessoas com perfis diferentes do seu. Se voc\u00ea \u00e9 homem, leia mulheres; se \u00e9 uma mulher branca, compre produtos feitos por mulheres negras. Se \u00e9 heterossexual, d\u00ea oportunidade para uma pessoa homossexual; convide uma mulher ind\u00edgena para palestrar no seu evento. Apoie as cotas. O objetivo final \u00e9 fazer com que as pessoas menos privilegiadas tenham as mesmas oportunidades que voc\u00ea teve. E isso envolver mudar tudo!<\/p>\n Kilomba, Grada. Plantation memories<\/strong>: episodes of everyday racism. M\u00fcnster: Unrast-Verlag, 2016.<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":" Reconhecer privil\u00e9gios \u00e9 uma pauta quente da atualidade. Mas o que \u00e9 isso? Ser\u00e1 que temos que nos sentir culpad@s por termos nascido na fam\u00edlia em que nascemos e pelas oportunidades que tivemos? J\u00e1 tem cota disso e daquilo, j\u00e1 tivemos mulher presidente e homossexual na pol\u00edtica. 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