Olhando para tr\u00e1s, n\u00e3o consigo entender como minha m\u00e3e conseguia se levantar da cama todos os dias. Tampouco consigo alcan\u00e7ar que for\u00e7a era aquela que lhe permitia sorrir e brincar conosco. Ela seguiu assim por alguns anos. Eu conseguia ver vida nos olhos dela. Ouvia sua gargalhada alta e achava que devia ser muito divertido ser ela. Abria seu guarda-roupa e passava seu perfume para sentir como seria ser t\u00e3o colorida e vibrante. Observava atentamente as rodas de conversas com suas amigas, o quanto ela falava, sorria e gesticulava.<\/p>\r\n<\/div>\r\n\r\n\r\n\r\n
\u00a0Depois de algum tempo, n\u00e3o sei se eu j\u00e1 tinha 13, 14 ou 15 anos, outra Preta passou a conviver comigo. Meus olhos de crian\u00e7a ficaram muito confusos. Eu realmente n\u00e3o conseguia entender como aquela mulher alegre, cheia de vida e de objetivos, brincalhona, bonita, esfor\u00e7ada e trabalhadora, se transformou em uma sombra. Em uma pessoa que n\u00e3o cuidava de si ou de sua casa. Que ignorava os filhos. Que dormia demais. Que parecia n\u00e3o se importar.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n
Se eu tivesse levado um soco. Se eu tivesse levado um soco e tivesse tr\u00eas filhos pra criar. Se eu tivesse levado um soco, tivesse tr\u00eas filhos pra criar e fosse miser\u00e1vel. Se isso se repetisse todos os dias por 15 anos em minha vida. Talvez eu entendesse. Mas eu era uma crian\u00e7a. E ela tentou tudo pra me proteger de notar o que acontecia.\u00a0<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n
Ele batia nela. Precisava que ela trabalhasse fora para colocar comida dentro de casa, mas deixava bem claro que n\u00e3o era para ela ser assim t\u00e3o independente. Ent\u00e3o, vez ou outra, destru\u00eda violentamente objetos que ela comprava com o suor de seu trabalho, fazia fogueira com suas roupas ou pegava seu dinheiro e sa\u00eda para gastar na rua. Um dia ela foi embora.<\/strong><\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n A \u00fanica coisa que eu enxerguei, por anos, sobre esse fato, foi uma m\u00e3e que abandonou os filhos. Foi no puerp\u00e9rio que passei de ser a filha cheia de m\u00e1goas da inf\u00e2ncia, para ser uma m\u00e3e que observou bem de perto outra m\u00e3e em uma situa\u00e7\u00e3o completamente distinta da minha. Eu passava horas olhando meu beb\u00ea e pensando que um dia eu j\u00e1 tive aquele tamanho e que minha m\u00e3e tamb\u00e9m tinha sido m\u00e3e de um beb\u00ea. Que ao contr\u00e1rio dela, eu morava em uma casa onde reinava a paz e n\u00e3o havia nem sombra de d\u00favida que eu faria tr\u00eas ou quatro boas refei\u00e7\u00f5es ao dia.\u00a0<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n O puerp\u00e9rio, por si s\u00f3, j\u00e1 \u00e9 bastante dif\u00edcil. E eu vivi o meu, passando a limpo a minha m\u00e3e. Foi doloroso reviver cada cap\u00edtulo da minha inf\u00e2ncia. Eu tinha guardado tudo a sete-chaves e, de repente, sem que eu jamais pudesse esperar, veio tudo \u00e0 tona. Todas as lembran\u00e7as que eu havia enterrado, nasceram junto com meu filho.\u00a0<\/strong><\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n Eu s\u00f3 fui entender o prop\u00f3sito de toda aquela enxurrada de mem\u00f3rias e sentimentos quando meu filho j\u00e1 estava prestes a completar tr\u00eas anos: enxergar que eu n\u00e3o era mais aquela crian\u00e7a abandonada naquela casa de 30 anos atr\u00e1s. Que minha m\u00e3e foi embora para n\u00e3o morrer, n\u00e3o porque n\u00e3o nos amava. Eu n\u00e3o era ela, eu era livre.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n Depois de alguns meses ela voltou pra casa. Ali, nada mudou. E ela s\u00f3 p\u00f4de ir embora, definitivamente, muitos anos mais tarde. Quando j\u00e1 era s\u00f3 uma sombra de si mesma e havia perdido boa parte de sua autoestima. Sobre tudo o que aconteceu, comigo e com ela, nunca pudemos conversar pessoalmente. Ela faleceu enquanto eu ainda era uma crian\u00e7a magoada, presa ao corpo de uma adulta. No entanto, outros di\u00e1logos foram abertos, principalmente com a crian\u00e7a que um dia eu fui e com a m\u00e3e que ela foi um dia. E essas, s\u00e3o minhas melhores conversas, as que me libertam e libertam a minha m\u00e3e.\u00a0<\/p>\r\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":" \u00a0Depois de algum tempo, n\u00e3o sei se eu j\u00e1 tinha 13, 14 ou 15 anos, outra Preta passou a conviver comigo. Meus olhos de crian\u00e7a ficaram muito confusos. Eu realmente n\u00e3o conseguia entender como aquela mulher alegre, cheia de vida e de objetivos, brincalhona, bonita, esfor\u00e7ada e trabalhadora, se transformou em uma sombra. Em uma […]<\/p>\n","protected":false},"author":55,"featured_media":7769,"comment_status":"open","ping_status":"open","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":[],"categories":[207,126],"tags":[98,34,169],"_links":{"self":[{"href":"https:\/\/falafrida.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/3981"}],"collection":[{"href":"https:\/\/falafrida.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/falafrida.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/falafrida.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/users\/55"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/falafrida.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=3981"}],"version-history":[{"count":4,"href":"https:\/\/falafrida.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/3981\/revisions"}],"predecessor-version":[{"id":7775,"href":"https:\/\/falafrida.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/3981\/revisions\/7775"}],"wp:featuredmedia":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/falafrida.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/media\/7769"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/falafrida.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=3981"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/falafrida.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=3981"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/falafrida.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=3981"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}