Um tubar\u00e3o azul descansa ao fundo da maior piscina dentre as tr\u00eas oferecidas pelo cruzeiro. Era a sua piscina favorita porque usavam sal em vez de cloro e, por isso, ela n\u00e3o ficava t\u00e3o incomodada ao nadar nela.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n
Com o intuito juvenil de maximizar o proveito das f\u00e9rias familiares, resolveu ir \u00e0 piscina com o seu irm\u00e3o mais velho. Se era divertido ir l\u00e1 sozinha, seria ainda mais na companhia dele. O irm\u00e3o \u00e9 sete anos mais velho. Na \u00e9poca ela devia ter uns cinco anos e ele era o seu super-her\u00f3i particular.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n
Ela acreditava piamente em tudo o que ele dizia.<\/strong><\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n Nessa ida \u00e0 piscina ele disse que o tubar\u00e3o azul que jazia ao fundo da piscina era de verdade. Ela rebateu \u201cclaro que n\u00e3o! \u00c9 \u00f3bvio que \u00e9 um desenho!\u201d.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n Mas a semente foi jogada.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n Nasceu assim a primeira d\u00favida sobre a realidade.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n \u201cE se o tubar\u00e3o for de verdade? \u00c9 o meu irm\u00e3o, ele n\u00e3o mentiria pra mim.\u201d<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n Na d\u00favida ela n\u00e3o entrou na piscina at\u00e9 o fim da viagem, e se resignou a utilizar as outras duas piscinas cheias de cloro e vazias de sal.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n At\u00e9 ent\u00e3o, no auge de sua inf\u00e2ncia, ela n\u00e3o possu\u00eda no\u00e7\u00e3o do que significava ser gorda. A primeira ideia de que ser gorda era algo ruim foi na escola, tamb\u00e9m aos cinco anos. \u00a0<\/strong><\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n Era mais um dia comum, quando viu a turma inteira ridicularizando uma menina chamada Megan. N\u00e3o era preciso uma linguagem rebuscada para entender o contexto. Como m\u00edmica, s\u00f3 era necess\u00e1rio o essencial: Megan chorava no centro de um c\u00edrculo e envolta dela v\u00e1rios colegas a xingavam e riam sem parar de sua apar\u00eancia.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n Ser gorda n\u00e3o era mais o simples oposto de magro. Ser gorda agora era um defeito de car\u00e1ter. Era algo horr\u00edvel e que devia ser evitado se n\u00e3o quisesse ser desprezada pelos seus colegas.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n Ent\u00e3o um dia, em uma briga familiar seu irm\u00e3o a chamou de gorda. Era a primeira vez que aquele adjetivo aparecia, para depois se tornar um eterno alarme de carro em sua mente.<\/strong><\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n Ela rebateu \u201cclaro que eu n\u00e3o sou gorda!\u201d.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n Mas a semente foi jogada.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n A gordura plantou na cabe\u00e7a.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n \u201cE se eu realmente for gorda? \u00c9 o meu irm\u00e3o, ele n\u00e3o mentiria pra mim\u201d.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n Na d\u00favida, era melhor acreditar nele e comer menos. Era o nascimento de uma futura mulher esfomeada da vida. Era a morte de uma menina completamente despreocupada com o seu corpo.<\/strong><\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n Ao saber de seu ponto fraco, o amor fraterno atirava sempre no mesmo alvo. Dessa vez a frase foi que ela tinha \u201cbra\u00e7os de polaca batedora de queijo\u201d e pronto. Mais uma precoce morte da inocente apar\u00eancia dos bra\u00e7os.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n Antes bra\u00e7os desproblematizados, agora bra\u00e7os gordos, feios.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n Deformados.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n Mas essa ferida n\u00e3o seria pontual do super-her\u00f3i particular.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n Sua m\u00e3e estava brava em um jantar de fam\u00edlia. Alguma coisa relacionada \u00e0 alguma malcria\u00e7\u00e3o cometida no in\u00edcio do dia. O que melhor do que ofender a sua bela prole, um exemplo de amor maternal, do que chamar sua filha de gorda?<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n Ela foi proibida de jantar. \u201cEstava gorda demais para jantar conosco\u201d. Lhe foi permitido comer uma banana em seu quarto. Ela chorou at\u00e9 dormir, a banana esquecida no canto do quarto. Chorava porque estava com fome e queria jantar. Chorava porque n\u00e3o queria ser gorda de jeito nenhum.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n Chorava porque tinha apenas 10 anos.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n Anos depois, em um momento de nostalgia, ela resolveu folhear um \u00e1lbum de fotos da fam\u00edlia. Ap\u00f3s uma vida inteira se vendo como uma crian\u00e7a gorda, esperava ver imagens de uma garotinha roli\u00e7a, sorriso abafado pelas bochechas, coxas que se abra\u00e7avam e se assavam involuntariamente.<\/strong><\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n E ela n\u00e3o podia ter sentido maior espanto ao ver as fotos.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n Cada foto causava um embrulho no est\u00f4mago. Como se pudesse vomitar todas as vezes em que foi chamada de gorda. Uma raiva tomava conta dela. Uma vontade de chorar por ter sido enganada pelos outros e por ela mesma. Chorava porque estava com raiva e n\u00e3o queria estar. Chorava porque ela n\u00e3o tinha sido gorda de jeito nenhum. Mas achava desde antes dos 10 anos. Chorava porque aquilo n\u00e3o deveria incomodar tanto, mas incomodava.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n Algu\u00e9m lhe chamou de gorda quando era nova demais para poder saber quem ela era. Como n\u00e3o se conhecia, acreditou nos outros. Mas n\u00e3o a ensinaram a n\u00e3o acreditar em palavras que eram feitas s\u00f3 para arrancar peda\u00e7os.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n Olhou para a menina daquelas fotos. Pensou em quantos dias da sua vida foram gastos se sentindo mal consigo mesma. Quantos dias deixou de comer porque \u201cestava gorda\u201d.<\/strong><\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n E se ela tivesse sido gorda? Por que isso deveria ser um problema?<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n Depois disso trilhou o seu pr\u00f3prio e tortuoso caminho de autoconhecimento. Mas mesmo assim h\u00e1 aqueles dias. Dias em que se sente feia nas fotos. Dias em que se sente in\u00fatil. Dif\u00edcil. Substitu\u00edvel. Dias em que acredita nas palavras daquele falido super-her\u00f3i que conseguiu ser menos super do que era her\u00f3i.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n A diferen\u00e7a \u00e9 que hoje quando se v\u00ea infestada de defeitos, quando se debate, \u00e0 procura desesperada de ar enquanto se afoga em autocr\u00edtica, ela para.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n Simplesmente para.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n E em um respiro consegue ver que talvez tudo isso seja s\u00f3 o tubar\u00e3o azul no fundo da piscina.<\/strong><\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n Ele pode ser real e te devorar ou ele pode ser s\u00f3 um decalque l\u00e1 no fundo. Um simulacro de perigo iminente. Uma mentira mixuruca e mal elaborada.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n No fundo no fundo o tubar\u00e3o est\u00e1 l\u00e1 para todas n\u00f3s.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n Cabe voc\u00ea escolher acreditar que ele \u00e9 real ou n\u00e3o.\u00a0<\/p>\r\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":" Um tubar\u00e3o azul descansa ao fundo da maior piscina dentre as tr\u00eas oferecidas pelo cruzeiro. Era a sua piscina favorita porque usavam sal em vez de cloro e, por isso, ela n\u00e3o ficava t\u00e3o incomodada ao nadar nela. 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