\r\n

No Brasil, uma em cada 5 mulheres de at\u00e9 40 anos j\u00e1 interrompeu uma gesta\u00e7\u00e3o. Dessas, 56% s\u00e3o cat\u00f3licas, 25% s\u00e3o evang\u00e9licas ou protestantes e 7% professam outras religi\u00f5es. A maioria delas j\u00e1 \u00e9 m\u00e3e: 67% t\u00eam filhos^{1. <\/sup>Esses dados s\u00e3o fundamentais para compreender a dimens\u00e3o do aborto no Brasil e, em especial, identificar quem s\u00e3o as mulheres que est\u00e3o voluntariamente interrompendo gesta\u00e7\u00f5es que n\u00e3o desejam levar a termo. Descobrir que essas mulheres s\u00e3o adultas, religiosas e que n\u00e3o necessariamente repudiam qualquer possibilidade de exercer a maternidade (afinal, muitas j\u00e1 s\u00e3o m\u00e3es) contraria o que diz o senso comum ou os discursos contr\u00e1rios a descriminaliza\u00e7\u00e3o do aborto.<\/p>\r\n<\/div>\r\n\r\n\r\n\r\n}

Ou seja, ao deixar de considerar essa pr\u00e1tica um crime, ela busca deslocar a quest\u00e3o do \u00e2mbito penal \u2013 que cega, invisibiliza, empurra para a clandestinidade e mata as mulheres \u2013 para a sa\u00fade p\u00fablica, onde \u00e9 poss\u00edvel discutir sobre o aborto e compreender a realidade das mulheres que, mesmo usando m\u00e9todos contraceptivos (sim, eles falham), deparam-se com gesta\u00e7\u00f5es indesejadas. <\/strong><\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n

Ao enxergar o tema pela \u00f3tica da sa\u00fade \u00e9 poss\u00edvel garantir direitos e dar respostas adequadas por meio de pol\u00edticas p\u00fablicas. Mesmo que esse seja o segundo passo \u2013 da legaliza\u00e7\u00e3o \u2013, importa fundamentalmente nesse momento descriminalizar essa pr\u00e1tica que ocorre diariamente de forma mais ou menos insegura, dependendo de qual mulher o faz: rica ou pobre, negra ou branca, urbana ou rural\u2026<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n

\u00c9 por isso que precisamos falar sobre gesta\u00e7\u00e3o indesejada, autonomia e educa\u00e7\u00e3o. Sexualidade e reprodu\u00e7\u00e3o j\u00e1 foram duas coisas intrinsecamente ligadas. Entretanto, o uso de m\u00e9todos contraceptivos permite \u00e0s mulheres exercer a sexualidade sem necessariamente isso acarretar reprodu\u00e7\u00e3o. Dai parecem surgir ao menos tr\u00eas problemas.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n

O primeiro \u00e9 a incapacidade de um sistema patriarcal e machista aceitar a liberdade sexual das mulheres, que as pune por exercerem seus pr\u00f3prios direitos \u2013 como o de livremente exercer sua sexualidade. Na l\u00f3gica sexista, se uma mulher engravida por exercer esse direito, ela precisa obrigatoriamente aceitar as \u201cconsequ\u00eancias\u201d do ato (hetero) sexual.<\/strong><\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n

O segundo problema \u00e9 cobrar a responsabilidade exclusiva das mulheres em prevenir a gravidez, quando ela depende igualmente dos homens. Al\u00e9m da pr\u00f3pria gravidez ocorrer no corpo da mulher, socialmente o trabalho de cuidado dos beb\u00eas e das crian\u00e7as s\u00e3o relegados \u00e0s mulheres em raz\u00e3o de estarem na famosa \u201cesfera privada\u201d. Para muito al\u00e9m de uma suposta \u201ccapacidade\u201d feminina exclusiva para esse tipo de cuidado (al\u00e9m da gesta\u00e7\u00e3o, do parto e da amamenta\u00e7\u00e3o), o que acontece \u00e9 uma divis\u00e3o sexual do trabalho atribu\u00edda a partir de uma socializa\u00e7\u00e3o \u2013 que inicia na inf\u00e2ncia \u2013 diferente para homens e mulheres e que distribui assimetricamente certos papeis a cada um\/a.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n

O terceiro problema \u00e9 presumir que m\u00e9todos contraceptivos s\u00e3o 100% seguros, sejam os preservativos feminino e masculino, a p\u00edlula, o dispositivo intrauterino (DIU) etc. At\u00e9 a esteriliza\u00e7\u00e3o cir\u00fargica masculina, como a vasectomia, pode ser revertida espontaneamente e acarretar uma gravidez indesejada. Assim, mesmo que fosse usado um m\u00e9todo contraceptivo 99% seguro, de cada 100 rela\u00e7\u00f5es sexuais, ao menos uma incorreria em uma gravidez n\u00e3o desejada. Por que uma mulher deveria ser obrigada a manter essa gesta\u00e7\u00e3o ou ser criminalizada caso a interrompesse? A resposta passa, mais uma vez, pelo sistema machista e patriarcal travestido de uma defesa abstrata da \u201cvida\u201d, ignorando que para al\u00e9m da vida do feto h\u00e1 tamb\u00e9m a vida da mulher da qual ele depende.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n

O Estado, contudo, n\u00e3o pode reproduzir nem alimentar esse sistema. Pelo contr\u00e1rio, precisa garantir os valores e as liberdades democr\u00e1ticas, incluindo a autonomia que permeia os direitos sexuais e reprodutivos.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n

Enquanto o Estado decidir sobre os corpos das mulheres e n\u00e3o pudermos escolher sobre o rumo de nossas pr\u00f3prias vidas, a democracia estar\u00e1 em d\u00edvida conosco. Al\u00e9m de a criminaliza\u00e7\u00e3o do aborto ser antidemocr\u00e1tica, ela \u00e9 tamb\u00e9m injusta na medida em que relega as mulheres ao espa\u00e7o privado da reprodu\u00e7\u00e3o e nega a paridade de participa\u00e7\u00e3o no espa\u00e7o p\u00fablico. <\/strong><\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n

Enquanto a maternidade for compuls\u00f3ria n\u00e3o ser\u00e1 poss\u00edvel falar em igualdade de g\u00eanero. \u00a0A paternidade, por outro lado, parece ser uma escolha: \u00e9 sempre bom lembrar que, no Brasil, 5,5 milh\u00f5es de crian\u00e7as n\u00e3o t\u00eam registro do pai na Certid\u00e3o de Nascimento^{2<\/sup>.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n}

Al\u00e9m disso, enquanto a interrup\u00e7\u00e3o volunt\u00e1ria permanece na esfera penal, ela alimenta o estigma do crime e fortalece os argumentos conservadores contr\u00e1rios aos direitos humanos das mulheres, impedindo a garantia do direito \u00e0 interrup\u00e7\u00e3o inclusive nos casos de abortamento legal (gravidez resultante de estupro, risco de vida a sa\u00fade da gestante e anencefalia).<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n

Por fim, \u00e9 preciso falar sobre educa\u00e7\u00e3o como um meio pelo qual ser\u00e1 poss\u00edvel discutir aberta e democraticamente sobre tudo que permeia sexualidade, reprodu\u00e7\u00e3o, maternidade, preven\u00e7\u00e3o tanto de gravidez quando de infec\u00e7\u00f5es sexualmente transmiss\u00edveis, direitos, sa\u00fade, vida. Ao inv\u00e9s de ignorar a realidade do aborto quando ele \u00e9 criminalizado, situ\u00e1-lo no campo da sa\u00fade p\u00fablica possibilita as mulheres falar sobre suas realidades e tomar decis\u00f5es verdadeiramente aut\u00f4nomas em rela\u00e7\u00e3o a manuten\u00e7\u00e3o ou n\u00e3o de uma gravidez inicialmente indesejada \u2013 que pode assim continuar ou n\u00e3o. Antes mesmo disso, uma educa\u00e7\u00e3o em sexualidade adequadamente orientada \u00e9 capaz de garantir o desenvolvimento da autonomia e o exerc\u00edcio da sexualidade em conson\u00e2ncia com os direitos humanos, ou seja, livre de qualquer tipo de viol\u00eancia^{3<\/sup>.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n}

^{1<\/sup>DINIZ, Debora. MEDEIROS, Marcelo. Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com t\u00e9cnica de urna. In:\u00a0Ci\u00eancia e Sa\u00fade Coletiva<\/strong>, v. 15, supl. 1, jun. 2010, p. 959-966. Dispon\u00edvel em: <http:\/\/www.scielo.br\/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232010000700002&lng=en&nrm=iso><\/a> Acesso em: 02 nov. 2014.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n}

^{2<\/sup>\u00a0BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTICA.\u00a0Pai presente e certid\u00f5es<\/strong>. Bras\u00edlia: CNJ, 2012. Dispon\u00edvel em:}<http:\/\/www.crianca.mppr.mp.br\/arquivos\/File\/publi\/cnj\/cartilha_pai_presente_indice.pdf><\/a> Acesso em: 14 ago. 2018.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n

^3<\/sup>[<\/a>ROSENDO, Daniela; GON\u00c7ALVES, Tamara Amoroso. Direito \u00e0 vida e \u00e0 personalidade do feto, aborto e religi\u00e3o no contexto brasileiro: Mulheres entre a vida e a morte.\u00a0Ethic@<\/strong>\u00a0\u2013 Florian\u00f3polis, Santa Catarina, Brasil, v.14, n. 2, p. 300 \u2013 319, dez. 2015.<\/p>\r\n\r\n\r\n\r\n

*Esse texto foi originalmente publicado no dia 15 de agosto de 2018 no Justificando<\/a>.<\/p>\r\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"