Para algumas pessoas, ser feminista e defensora dos animais pode parecer incoerente quando se trata de uma agenda fundamental do movimento feminista: a quest\u00e3o da interrup\u00e7\u00e3o volunt\u00e1ria da gravidez, ou seja, do aborto. A suposta incoer\u00eancia adv\u00e9m, em termos gerais, da ideia de que defender os animais \u00e9 ser a favor da vida e, portanto, n\u00e3o seria poss\u00edvel defender a \u201cinterrup\u00e7\u00e3o da vida\u201d. Entretanto, o que defendo \u00e9 justamente o oposto: quando se trata do direito ao aborto, a defesa da vida dos animais n\u00e3o \u00e9 incompat\u00edvel com esse posicionamento. Pelo contr\u00e1rio, o discurso antiaborto \u00e9 permeado por um vi\u00e9s machista, que impede o reconhecimento da autonomia da mulher e contribui para uma vis\u00e3o antropoc\u00eantrica<\/a> da vida.<\/p>\n<\/div>\n Essa aparente dicotomia pode ser explicada em raz\u00e3o de que o debate sobre o aborto \u00e9 marcado por duas posi\u00e7\u00f5es contr\u00e1rias, comumente identificadas como \u201cpr\u00f3-vida\u201d, por parte daquelas que defendem a proibi\u00e7\u00e3o da interrup\u00e7\u00e3o da gravidez e defendem a vida do feto, e \u201cpr\u00f3-escolha\u201d, a favor do direito de a mulher decidir sobre a continuidade ou n\u00e3o da gesta\u00e7\u00e3o.<\/p>\n Por vezes, o discurso e as estrat\u00e9gias de argumenta\u00e7\u00e3o em defesa dos animais se aproximam do movimento pelo direito \u00e0 vida do feto (pr\u00f3-vida). Por outro lado, a \u00eanfase na \u201cescolha\u201d conecta as defensoras da produ\u00e7\u00e3o, venda e uso de animais com o movimento pr\u00f3-escolha. Contudo, da mesma forma que defensoras dos animais enfrentam o desafio de mostrar a verdade sobre a vida e realidade \u00e0s quais eles s\u00e3o submetidos, o movimento pr\u00f3-escolha tem o desafio de mostrar a verdade sobre a vida das mulheres.<\/p>\n O aborto passa a ser uma quest\u00e3o ecofeminista quando, em alguma medida, a defesa dos animais pode incorrer na viola\u00e7\u00e3o dos direitos humanos das mulheres. O racioc\u00ednio deve ser exatamente ao contr\u00e1rio: a defesa do direito ao aborto contribui para uma \u00e9tica n\u00e3o-antropoc\u00eantrica, a qual \u00e9 vislumbrada pelas defensoras dos animais. O ecofeminismo mostra, portanto, que os sistemas de domina\u00e7\u00e3o est\u00e3o interligados e que o machismo pode estar presente tamb\u00e9m nos discursos em defesa os animais. Prestar aten\u00e7\u00e3o aos motivos e aos argumentos pelos quais os animais e a vida, de forma geral, s\u00e3o defendidos, \u00e9 fundamental para avan\u00e7ar efetivamente na considerabilidade moral de humanos e outros que n\u00e3o humanos.<\/p>\n Com o apelo \u00e0 vida do embri\u00e3o independentemente do corpo da mulher ao qual pertence, as mulheres s\u00e3o destitu\u00eddas de sua condi\u00e7\u00e3o de sujeitos hist\u00f3ricos e pol\u00edticos e a identidade da mulher gr\u00e1vida passa a ser associada somente \u00e0 maternidade, destitu\u00edda de sua singularidade.<\/strong><\/p>\n \u201cA mulher \u00e9 reduzida ao seu corpo, e a \u00fanica potencialidade que interessa \u00e9 a de que pode ser m\u00e3e\u201d, afirma Marcia Tiburi (2014, p. 167). Contrariando o princ\u00edpio kantiano, a mulher deixa de ser, enquanto ser humano, um fim em si mesmo, e passa a ser um meio pelo qual o embri\u00e3o se torna um beb\u00ea. A vida em potencial do embri\u00e3o recebe uma condi\u00e7\u00e3o especial de \u201cmais vida\u201d, enquanto a mulher torna-se \u201cmais corpo\u201d, destitu\u00edda de sua vida atual. \u201cA vida potencial \u00e9 considerada nesse argumento idealista como maior e mais valiosa do que a atual. \u00c9 isto o que torna sua rela\u00e7\u00e3o assim\u00e9trica: mesmo que o embri\u00e3o precise do corpo da mulher, n\u00e3o derivaria dele.\u201d (TIBURI, 2014, p. 172).<\/p>\n Um estudo realizado no Brasil em 2010, por Debora Diniz e Marcelo Medeiros (2010), mostra que, ao completar 40 anos, mais de uma em cada cinco mulheres j\u00e1 fez aborto, geralmente realizado no centro do per\u00edodo reprodutivo, ou seja, entre 18 e 29 anos. Esse fato tem rela\u00e7\u00e3o direta com o alto \u00edndice de mortalidade materna. Dados da Organiza\u00e7\u00e3o Mundial de Sa\u00fade (2013) estimam que sejam realizados 22 milh\u00f5es de abortamentos em condi\u00e7\u00f5es inseguras, os quais acarretam a morte de 47 mil mulheres, al\u00e9m de disfun\u00e7\u00f5es f\u00edsicas e mentais a cinco milh\u00f5es de mulheres.<\/p>\n No Brasil, a cada dois dias uma mulher morre devido a abortos inseguros. Por outro lado, nos pa\u00edses onde o aborto \u00e9 descriminalizado, tanto o n\u00famero de abortos quanto o de mortalidade materna diminuem exponencialmente. No Uruguai, por exemplo, esse n\u00famero diminuiu de 33 mil por ano para 4 mil.<\/strong><\/p>\n A quest\u00e3o do aborto n\u00e3o \u00e9 dissociada da quest\u00e3o ambiental. No \u00e2mbito da Organiza\u00e7\u00e3o das Na\u00e7\u00f5es Unidas, por exemplo, nas Confer\u00eancias realizadas tanto em 1992 (Eco-92) quanto em 2012 (Rio+20), a igualdade de g\u00eanero e o empoderamento das mulheres, inclusive em rela\u00e7\u00e3o \u00e0 sa\u00fade sexual e reprodutiva, s\u00e3o tidos como quest\u00f5es transversais em rela\u00e7\u00e3o ao desenvolvimento sustent\u00e1vel.<\/p>\n A pol\u00eamica em rela\u00e7\u00e3o ao aborto se coloca diante de um conflito entre o direito \u00e0 vida do feto e o direito \u00e0 autonomia da mulher, e comumente reflete os discursos de dois movimentos, o religioso em defesa da vida e o feminista em defesa das mulheres. Entretanto, a defesa da vida dos animais n\u00e3o implica na defesa da vida do feto. Na verdade, h\u00e1 um deslocamento da vida da mulher, enquanto indiv\u00edduo, para o feto. Assim, \u00e9 necess\u00e1rio voltar o olhar \u00e0s mulheres e reconhec\u00ea-las como sujeitos morais capazes de tomar as decis\u00f5es sobre seus pr\u00f3prios corpos. Quando o aborto se mant\u00e9m na ilegalidade, a vida que corre um alto risco \u00e9 a da mulher. Nesse sentido, entende-se que o direito ao aborto deve ser compreendido como parte dos direitos reprodutivos, sob a guarda dos direitos humanos.<\/p>\n Se a precariedade no debate sobre o aborto \u00e9 fruto de uma sociedade machista, \u00e9 preciso ter cuidado com a defesa dos animais que incorra nesse mesmo erro. Assim como as mulheres n\u00e3o podem se libertar sozinhas da opress\u00e3o sexista e deixar os animais na condi\u00e7\u00e3o de inferioridade imposta pelos dualismos de valor marcados pelo especismo, a defesa dos animais tamb\u00e9m n\u00e3o pode manter as mulheres aprisionadas ao sistema machista que impede sua autonomia reprodutiva. Ali\u00e1s, essa autonomia tamb\u00e9m n\u00e3o \u00e9 concedida a todas as vacas e galinhas mantidas em aprisionamento para explora\u00e7\u00e3o de suas capacidades reprodutivas e extra\u00e7\u00e3o de leite e ovos, respectivamente.<\/p>\n Sexismo e especismo est\u00e3o de m\u00e3os dadas e possuem a mesma matriz moral e cognitiva. Feministas, defensores e defensoras dos animais tamb\u00e9m precisam dar as m\u00e3os para vencerem a opress\u00e3o.<\/strong><\/p>\n Refer\u00eancias<\/p>\n DINIZ, Debora. MEDEIROS, Marcelo. Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com t\u00e9cnica de urna. In: Ci\u00eancia e Sa\u00fade Coletiva, v. 15, supl. 1, jun. 2010, p. 959-966. Dispon\u00edvel em: http:\/\/www.scielo.br\/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232010000700002&lng=en&nrm=iso<\/a> Acesso em: 02 nov. 2014.<\/p>\n TIBURI, M\u00e1rcia. Aborto como met\u00e1fora. In: BORGES, Maria de Lourdes; TIBURI, M\u00e1rcia (org.). Filosofia: Machismos e feminismos. Florian\u00f3polis: Ed. da UFSC, 2014. p. 163-176.<\/p>\n