H\u00e3o de dizer que este s\u00e9culo foi de trevas – e de fato o foi. O que v\u00e3o esquecer de dizer \u00e9 que n\u00f3s t\u00ednhamos olhos capazes de enxergar no escuro. Era sob a prote\u00e7\u00e3o do manto da noite que \u00e9ramos livres. Fug\u00edamos das tochas da aldeia, do jugo dos pais e dos maridos, dos olhares e das intrigas e nos entranh\u00e1vamos nos bosques guiadas pelos vagalumes. O que v\u00e3o esquecer de dizer \u00e9 que n\u00f3s fal\u00e1vamos com os bichos, especialmente os que acordam depois do p\u00f4r do sol. Algumas de n\u00f3s tinham tido a sorte ou a sabedoria necess\u00e1ria para terem ao lado homens que compreendiam que elas precisavam correr selvagens de vez em quando; outras, que conheceram a bruxaria e o poder mais tarde (mas nunca tarde demais), as que se viram por anos diante da praga de se submeter a homens p\u00fatridos, corruptos e violentos, se iniciavam conosco e descobriam maneiras de fugir. A essas n\u00f3s ensin\u00e1vamos as ervas que traziam o sono mais profundo, os ch\u00e1s que derrubavam as bestas, os cogumelos que adoeciam – os ogros num instante se transformavam em belas adormecidas. Pod\u00edamos faz\u00ea-los dormir por dias, se quis\u00e9ssemos. Pod\u00edamos faz\u00ea-los doentes, minar sua for\u00e7a. Pod\u00edamos mat\u00e1-los, quando em casos extremos.<\/p>\n

O que v\u00e3o esquecer de dizer \u00e9 que faz\u00edamos tudo por amor. Amor umas \u00e0s outras. Era um mundo cruel para mulheres, um tempo demente, em que dev\u00edamos preservar a dec\u00eancia, abrir as pernas s\u00f3 para parir filhos e nunca dan\u00e7ar com os seios nus. Mas tudo isso, voc\u00eas bem sabem, n\u00e3o \u00e9 da nossa natureza, n\u00e3o, n\u00e3o nascemos para nos conter, somos rio sem represa e sabemos disso desde o princ\u00edpio em que deus nos p\u00f4s uma fenda no meio das pernas.<\/p>\n

Aprendemos a namorar a Natureza para que ela nos desse suas b\u00ean\u00e7\u00e3os \u2013 \u00e9 claro que deu. A Natureza \u00e9 puta generosa, d\u00e1 tudo que pedimos, por isso tanto a exploram, mas quando ela se revolta \u2013 \u00e9 guerra sem vit\u00f3ria. A ela nos curv\u00e1vamos e na lua cheia plant\u00e1vamos nosso sangue na terra, para lhe devolver um pouco do tanto que nos dava, por isso era nos bosques que t\u00ednhamos predile\u00e7\u00e3o para realizar os rituais, para estar mais perto Dela, a grande m\u00e3e, a grande prostituta.<\/p>\n

Adormec\u00edamos os pais, os maridos, os filhos e nos embrenh\u00e1vamos na floresta negra, os lobos uivavam sentindo nosso cheiro de f\u00eamea no cio, as serpentes rastejavam ao nosso lado e por pura divers\u00e3o se intrometiam debaixo das pesadas saias, se enroscavam pelas panturrilhas e subiam pelas coxas \u2013 picavam o nosso sexo e n\u00e3o morr\u00edamos. Pelo contr\u00e1rio, a picada acendia a vida, fazia arder tudo, incandescia um fogo bravo pelo ventre \u2013 era o in\u00edcio do transe.<\/p>\n

Quando alcan\u00e7\u00e1vamos a clareira, a mais velha, a dos cabelos mais brancos, j\u00e1 tinha acendido a fogueira, a po\u00e7\u00e3o passava de m\u00e3o em m\u00e3o, era uma mistura torpe de vinho, sangue, ervas e veneno de cobra, era amargo e grosso, mas beb\u00edamos sem reclamar. Os morcegos voavam enlouquecidos, as corujas piavam alegres e n\u00f3s, em prece para a lua, come\u00e7\u00e1vamos a dan\u00e7ar. As botinas, os espartilhos, as camisas de algod\u00e3o cru, as enfadonhas saias de l\u00e3, as cobran\u00e7as, os pap\u00e9is, \u00edamos tirando tudo o que nos limitava, n\u00e3o sent\u00edamos frio mesmo quando ca\u00eda a neve, mesmo quando o inverno baixava cruel. Nossa pele era quente e nossos bra\u00e7os pr\u00f3digos: ca\u00edmos nos abra\u00e7os umas das outras porque sab\u00edamos que juntas \u00e9ramos mais poderosas. A carne contra carne produz magia; voc\u00eas, nossas filhas, netas, bisnetas, tataranetas, voc\u00eas no fundo ainda sabem disso, \u00e9 conhecimento ancestral.<\/p>\n

\u00c0s vezes os rituais tinham ordem, \u00e0s vezes eram pura anarquia, as m\u00e1s l\u00ednguas diziam que honr\u00e1vamos Sat\u00e3, sim, honr\u00e1vamos, honr\u00e1vamos Lilith, Deus, V\u00eanus, \u00cdris, Caronte, Freya, oficiais ou pag\u00e3os, cada uma honrava o deus que mais forte lhe revirasse o est\u00f4mago, porque foda-se, o divino est\u00e1 em tudo e n\u00f3s sab\u00edamos disso. \u00a0<\/p>\n

Sob \u00e0 luz da fogueira n\u00f3s brilh\u00e1vamos, deit\u00e1vamos sobre o tapete das folhas secas e com a boca ainda amarga nos beij\u00e1vamos beijos longos, demorados; a Natureza nos ensina sobre a arte da paci\u00eancia, \u00e9 preciso regar, e n\u00f3s reg\u00e1vamos as bucetas umas das outras com saliva quente, era um festival de bucetas das mais saborosas, umas eram frescas e sedosas, com bucetas rosadas que mal tinham acabado de florescer, de pelos loiros cheirando a l\u00edrios e jasmins, outras eram corpulentas e lascivas, com bucetas de negros e fartos pelos encaracolados, cheiro de terra molhada, dessas que te sugam pra dentro, outras eram ruivas e fogosas, com bucetas como labaredas, dessas t\u00e3o quentes que a l\u00edngua se queima no toque, outras eram et\u00e9reas e melosas, com bucetinhas que choravam de emo\u00e7\u00e3o quando acariciadas, pingando uma \u00e1gua doce. \u00c9ramos muitas e \u00e9ramos vastas, universos em constante expans\u00e3o.<\/p>\n

Eram horas e horas noite adentro, num carnaval profano de gemidos e invoca\u00e7\u00f5es, umas arfavam como corujas, baixinho e delicadas, outras miavam como gatas selvagens, outras gritavam ensandecidas invocando seus deuses e dem\u00f4nios; era uma confus\u00e3o de pernas e bra\u00e7os e seios que eu chupava com ardor. Das gr\u00e1vidas vinha leite, que elas nos davam generosamente, n\u00f3s sab\u00edamos que tudo que vem do corpo da mulher \u00e9 sagrado, ent\u00e3o mam\u00e1vamos agradecidas e nos embriag\u00e1vamos.
\u200b
Era t\u00e3o palp\u00e1vel a energia densa que pairava entre n\u00f3s que logo o ar ficava turvo e emba\u00e7ado, uma n\u00e9voa c\u00e1lida, os vapores dos nossos h\u00e1litos, a pura for\u00e7a do nosso gozo, quando uma gozava logo as outras come\u00e7avam a gozar tamb\u00e9m, o fogo queimando as entranhas; homens n\u00e3o era convidados, mas algumas vezes fomos pegas. Gostavam de se embrenhar no mato os maridos desconfiados, os lenhadores perdidos, os poetas insones (esses particularmente meus favoritos), os que vagavam pela noite em busca de algo que n\u00e3o sabiam. Mas est\u00e1vamos preparadas para isso, alici\u00e1vamos o perdido \u00e0 orgia, o entorpec\u00edamos de tal maneira que logo ele estava alucinado e apaixonado por n\u00f3s, disposto a tudo, querendo de bom grado ser nosso sacrif\u00edcio, e n\u00f3s nos serv\u00edamos dele. Conhec\u00edamos tamb\u00e9m as ervas que mantinham o pau duro por horas, mais duro que a madeira das \u00e1rvores ao redor, assim todas que quisessem podiam usufruir. Depois devolv\u00edamos o pobre esgotado \u00e0 aldeia, dormindo o sono dos pacificados, sim, n\u00f3s o poup\u00e1vamos, ele quando acordava n\u00e3o podia crer em tal absurdo e logo dava tudo por sonho. N\u00f3s r\u00edamos.
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N\u00e3o v\u00e3o contar isso, da nossa generosidade, v\u00e3o nos tomar como putas, ad\u00falteras, mal\u00e9ficas, mas n\u00e3o sabem de nada. Ainda hoje, s\u00e9culo que insistem em chamar de luminoso, n\u00e3o sabem de nada.<\/p>\n

Perdemos muitas de n\u00f3s, mortas na fogueira, torturadas com a criatividade mais vil. Ainda hoje continuamos perdendo. Por isso aqui volto para lhes dizer, filhas, netas, bisnetas, tataranetas, que voc\u00eas carregam o nosso sangue, o mesmo sangue, o sangue da Natureza, que corre como rio por dentro dos veios da carne, amparem suas irm\u00e3s na queda, usem todas as armas, defendam-se.<\/p>\n

E se eu lhes posso aconselhar algo \u00e9: n\u00e3o deixem o corpo morrer antes do tempo, antes da Morte que \u00e9 t\u00e3o poderosa quanto a Natureza, este \u00e9 o maior sacril\u00e9gio, deixar a vida apodrecer enrustida por debaixo das vestes e da casca; todo m\u00eas h\u00e1 lua para a qual dan\u00e7ar, a magia para se apelar, h\u00e1 vida para a qual viver.<\/p>\n

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