Muito vem se debatendo ultimamente sobre\u00a0lugar de fala<\/i>. Mas o que \u00e9 isso? Quem tem o direito de falar sobre o que? S\u00f3 posso reclamar de machismo se for mulher? S\u00f3 posso combater o racismo se for negra? Primeiramente, acredito que todo mundo pode e deve falar sobre tudo. N\u00e3o h\u00e1 assunto tabu. Vivemos (teoricamente) em uma democracia e, assim sendo, o debate sobre tudo \u00e9 necess\u00e1rio. S\u00f3 que alguns debates s\u00e3o mais vitais para determinados grupos de pessoas<\/i>. Ent\u00e3o nada mais certo do que eles terem, digamos, uma participa\u00e7\u00e3o especial<\/i> nessa conversa, n\u00e3o acha?<\/p>\n

Que lugar eu ocupo no mundo? Pergunta dif\u00edcil e que pode ser respondida de muitas formas. Por\u00e9m, quando se trata de um debate socioecon\u00f4mico, podemos lan\u00e7ar m\u00e3o de alguns par\u00e2metros para nos classificar. Vou escolher quatro: g\u00eanero, orienta\u00e7\u00e3o sexual, ra\u00e7a e classe.<\/p>\n

Eu, Nicole, sou uma mulher (isso informa meu g\u00eanero), heterossexual (isso informa minha orienta\u00e7\u00e3o sexual), branca (isso informa minha ra\u00e7a) e de classe m\u00e9dia (isso informa minha classe). Sendo assim, lugar de fala tem a ver com o tipo de experi\u00eancia que tenho por habitar este mundo com estas caracter\u00edsticas. <\/strong><\/p>\n

Entender o lugar de fala, de acordo com Djamila Ribeiro, que escreveu um livro* sobre o assunto, \u00e9 \u201centender como o lugar social que certos grupos ocupam restringem oportunidades\u201d (Ribeiro, 2017, p. 61). E dentro da sociedade atual, que tipo de experi\u00eancias eu provavelmente<\/i> vou ter \u00a0por apresentar essas caracter\u00edsticas que citei?<\/p>\n

Como mulher, provavelmente serei ensinada a brincar de casinha, a aspirar o casamento, a ser boazinha, sofrerei ass\u00e9dio nas ruas desde a inf\u00e2ncia at\u00e9 a idade adulta. Como mulher heterossexual, provavelmente nunca terei minha orienta\u00e7\u00e3o sexual questionada, j\u00e1 que sinto atra\u00e7\u00e3o por homens e esta \u00e9 a norma social. Como mulher heterossexual branca, provavelmente terei comida em casa desde meu primeiro dia de vida, n\u00e3o serei xingada por ser branca e minha apar\u00eancia f\u00edsica n\u00e3o s\u00f3 n\u00e3o ser\u00e1 questionada como tender\u00e1 a ser elogiada. Como mulher heterossexual branca de classe m\u00e9dia, h\u00e1 grandes chances de eu estudar em col\u00e9gio particular e entrar tranquilamente na faculdade, ap\u00f3s a qual arranjarei um bom emprego. Sobre esses fatos que formam a minha experi\u00eancia, eu tenho muita propriedade<\/i> para falar, concorda? Esse \u00e9 o meu lugar de fala<\/i>.\u00a0<\/span><\/p>\n

Agora vamos trocar alguns termos dessa conversa? Que experi\u00eancias eu provavelmente teria se fosse uma mulher homossexual? Se fosse mulher mulher homossexual negra? E se fosse uma mulher homossexual negra de classe baixa? Ser\u00e1 que eu teria conseguido fazer doutorado?<\/p>\n

Existem v\u00e1rios tipos de opress\u00e3o no mundo em que vivemos, mas algumas opress\u00f5es se somam<\/i> para alguns grupos de pessoas. Ent\u00e3o ser uma mulher negra homossexual de classe baixa significa estar no mundo de forma significativamente mais vulner\u00e1vel f\u00edsica, social e financeiramente do que estar no mundo como uma mulher branca heterossexual de classe m\u00e9dia, como eu. <\/strong><\/p>\n

E o que isso quer dizer? Que se deixarmos tudo como est\u00e1, esta mulher ter\u00e1 muitas dificuldades de melhorar as condi\u00e7\u00f5es em que vive. Ou seja, essa mulher precisa de mais assist\u00eancia social, mais pol\u00edticas a seu favor, mais oportunidades – do que eu preciso.\u00a0<\/span><\/p>\n

Que essa mulher tenha seu\u00a0lugar de fala<\/i>\u00a0respeitado \u00e9 muito importante na discuss\u00e3o sobre melhorar sua condi\u00e7\u00e3o de vida. Mas justamente por conta da precariedade da sua situa\u00e7\u00e3o \u00e9 que ela tem pouqu\u00edssimas chances de falar, seja em uma reportagem de televis\u00e3o, num artigo cient\u00edfico ou no parlamento. Por isso, o que acontece com frequ\u00eancia \u00e9 que outros falam por ela<\/em> – e nem sempre o que ela gostaria que fosse ouvido.\u00a0<\/span>Djamila explica que \u201cn\u00e3o poder acessar certos espa\u00e7os acarreta em n\u00e3o se ter produ\u00e7\u00f5es e epistemologias desses grupos nesses espa\u00e7os; n\u00e3o poder estar de forma justa nas universidades, meios de comunica\u00e7\u00e3o, pol\u00edtica institucional, por exemplo, impossibilita que as vozes dos indiv\u00edduos desses grupos sejam catalogadas, ouvidas \u201d (Ribeiro, 2017, p. 64).<\/p>\n

Mas o que fazer ent\u00e3o? Em primeiro lugar: ouvir. Em segundo, ouvir. E em terceiro, ouvir. Ampliar o nosso lugar de escuta<\/i>. Quem tem privil\u00e9gios (seja de g\u00eanero, ra\u00e7a, classe, orienta\u00e7\u00e3o sexual – al\u00f4 homem branco heterossexual de classe m\u00e9dia!) deveria procurar refer\u00eancias, artigos, livros, filmes, document\u00e1rios de pessoas de perfis diferentes do seu. <\/strong><\/p>\n

Porque ouvindo a experi\u00eancia daquela pessoa fica f\u00e1cil ter empatia e se aproximar um pouquinho do que ela vive e sente todos os dias. E quem tem privil\u00e9gios, deveria, por uma quest\u00e3o moral, ajudar a distribu\u00ed-los (ou no m\u00ednimo n\u00e3o atrapalhar quem luta por isso). Pois \u00e9 s\u00f3 assim que poderemos come\u00e7ar a transformar o mundo em um lugar mais justo e igualit\u00e1rio.<\/p>\n

Ent\u00e3o se todo mundo pode e deve falar sobre machismo, racismo, homofobia e desigualdade social, tem grupos que podem falar com mais propriedade sobre como \u00e9 experimentar essas opress\u00f5es no dia a dia. Se, como diz Grada Kilomba, o racismo \u00e9 um problema branco (no sentido de que \u00e9 inventado pelo branco, n\u00e3o pelo negro), ent\u00e3o o machismo \u00e9 um problema dos homens e a homofobia \u00e9 um problema dos heterossexuais. Defender as pessoas da viol\u00eancia e permitir que tenham as mesmas oportunidades \u00a0\u00e9 um problema de todos.<\/p>\n

*Ribeiro, D. (2017). O que \u00e9 lugar de fala?<\/em> Rio de Janeiro: Editora Letramento.<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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