A sensa\u00e7\u00e3o era de estar no Brasil de 80, 100 anos atr\u00e1s. Numa \u00e9poca em que as casas n\u00e3o tinham geladeira, todos usavam as t\u00e9cnicas naturais de conserva\u00e7\u00e3o de alimentos e cozinhavam apenas o necess\u00e1rio para hoje. Num tempo em que a \u00e1gua n\u00e3o chegava necessariamente pela torneira e era preciso caminhar bastante para busc\u00e1-la em po\u00e7os. Num cen\u00e1rio em que as crian\u00e7as viviam uma inf\u00e2ncia dividida entre brincadeiras, escola e tarefas \u2014 as dom\u00e9sticas e as da lida da terra.<\/p>\n

A realidade que encontrei na \u00c1frica era essa. T\u00e3o diferente da minha, mas t\u00e3o parecida com a de v\u00e1rias fam\u00edlias brasileiras num passado n\u00e3o muito distante. A compara\u00e7\u00e3o, portanto, era inevit\u00e1vel. Assim como a sensa\u00e7\u00e3o de \u201cevolu\u00e7\u00e3o por vir\u201d. Pois se o Brasil, independente desde 1822, cresceu e est\u00e1 aonde est\u00e1 hoje (ok, deixemos o cen\u00e1rio pol\u00edtico atual de lado), Gana, o primeiro pa\u00eds africano a conquistar sua independ\u00eancia, em 1957, Tanz\u00e2nia (1961) e Uganda (1962), est\u00e3o ainda no in\u00edcio de seu caminho, que h\u00e1 de ser bastante pr\u00f3spero.<\/p>\n

Essa ideia vinha \u00e0 minha mente em momentos distintos. Um deles \u00e9 quando conversava com as mulheres de l\u00e1 e elas soltavam um ou outro ind\u00edcio de luta contra o machismo dominante. Podia ser o simples manifesto de que o marido devia, sim, \u201cajud\u00e1-la\u201d a dar banho e alimentar os filhos; a decis\u00e3o \u2014 dela, e n\u00e3o dele \u2014 de ficar s\u00f3 nos dois filhos, para ter condi\u00e7\u00f5es tamb\u00e9m de trabalhar fora; ou at\u00e9 o plano das ainda garotas de adiar o casamento, afinal queriam chegar \u00e0 faculdade e ter uma profiss\u00e3o antes.<\/p>\n

B\u00e1sicas para mim, estas ideias tinham pinta de vanguardistas l\u00e1 na \u00c1frica. Escut\u00e1-las me fazia sorrir por fora e por dentro. E eu pensava: \u201ca evolu\u00e7\u00e3o, olhe s\u00f3, est\u00e1 vindo\u201d.<\/p>\n

Pois imagine como \u00e9 o dia a dia delas, se o meu era mais ou menos assim: os homens que vinham falar comigo logo perguntavam se sou casada. Respondia sim, e ent\u00e3o queriam saber cad\u00ea meu marido. Ou falavam, surpresos: Por que est\u00e1 sozinha? Sem falar nas centenas de vezes que s\u00f3 chegavam perto e diziam: Casa comigo? Ou, os mais incisivos: Vou me casar com voc\u00ea!<\/p>\n

Se eu estava com meu marido, a pergunta inicial era: este cara a\u00ed \u00e9 seu marido? E quando queriam tirar um foto comigo (os africanos curtem passar a ideia de ter um amigo branco; uma amiga ent\u00e3o\u2026) se dirigiam a ele pedindo permiss\u00e3o para tal, como se a decis\u00e3o n\u00e3o fosse minha.<\/p>\n

Da\u00ed que eu pensava novamente na ideia da \u201cevolu\u00e7\u00e3o por vir\u201d. Como se l\u00e1 eu estivesse diante de um machismo mais pulsante do que aquele que enfrentava em S\u00e3o Paulo, em meus c\u00edrculos sociais.<\/p>\n

At\u00e9 que voltei para casa, e um dia fui numa entrevista de emprego. Depois de me deixar esperando por 35 minutos, sem dar nenhuma explica\u00e7\u00e3o, o cara me chamou na sala dele. Olhou-me de cima a baixo de rabo de olho, pois o celular demandava sua aten\u00e7\u00e3o, e fez as seguintes perguntas, uma depois da outra: Voc\u00ea \u00e9 casada? Tem filhos? O que seu marido faz? Por que voc\u00ea fala assim, com esse sotaque caipira?<\/p>\n

Fiquei imaginando se ele teria esse comportamento e se teria feito essas mesmas perguntas para um entrevistado homem. Sa\u00ed de l\u00e1 pensando muito nas situa\u00e7\u00f5es que eu, mulher, vi e vivi durante a minha temporada em Gana, Uganda e Tanz\u00e2nia. E me senti obrigada a refazer as contas: a sensa\u00e7\u00e3o, muitas vezes, era de estar no Brasil de hoje mesmo.<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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