N\u00e3o pense tanto, n\u00e3o sofra tanto, n\u00e3o chore tanto. N\u00e3o seja t\u00e3o Gabriela.<\/strong><\/p>\n Esses s\u00e3o os conselhos que ouvi durante toda a minha vida.<\/p>\n Fiz for\u00e7a para segui-los e acrescentei outros de minha pr\u00f3pria autoria: n\u00e3o seja t\u00e3o cr\u00edtica, n\u00e3o abra a boca toda vez que achar que alguma coisa estiver errada, n\u00e3o seja t\u00e3o idealista\u2026.<\/p>\n Como sou meio rebelde, n\u00e3o os cumpri \u00e0 risca, mas fiz muito esfor\u00e7o.<\/p>\n Pra dar conta de ser assim, fui fazendo escolhas bem conservadoras. Fui \u201cme enquadrando\u201d.<\/p>\n Troquei o jornalismo pelo direito, tratei de ganhar logo meu dinheiro, de parar de criar caso e de achar que podia mudar o mundo.<\/p>\n Me cobri com uma tinta de gente respons\u00e1vel, s\u00e9ria e muito bem comportada. Gostava dessa \u201cnova cobertura\u201d. Gostava dos meus terninhos. Me sentia perfeitamente bem.<\/p>\n Ser aceita \u00e9 tudo que a gente quer. Ent\u00e3o ser advogada era uma escolha segura, poss\u00edvel, vantajosa sob muitos aspectos.<\/strong><\/p>\n Ocorre que, h\u00e1 uns cinco anos, a tinta come\u00e7ou a descascar e eu n\u00e3o quis mais pintar. E, \u00e0 medida que tinta saia, ia ficando mais Gabriela.<\/p>\n Nem preciso dizer pra voc\u00eas, que foi essa Gabriela que me trouxe at\u00e9 aqui.<\/p>\n Foi essa pessoa que me tirou da zona de conforto, me fez mudar de cidade, largar meu trabalho, come\u00e7ar a escrever, fazer mestrado e tentar viver de outro jeito.<\/p>\n Ainda, n\u00e3o tenho certeza se isso \u00e9 bom.<\/p>\n Ora, quando a gente envelhece, fica melhor, amadurece, \u201crefina\u201d a personalidade.<\/p>\n \u00c9 aquela velha hist\u00f3ria sobre a qual j\u00e1 escrevi, nasce incendi\u00e1rio, morre bombeiro.<\/p>\n Ent\u00e3o por que cargas d\u2019\u00e1gua eu quero voltar a ser incendi\u00e1ria?\u00a0Porque que deixei algo pelo caminho. Essa pessoa que eu era ou, sou.<\/strong><\/p>\n Lendo o Mulheres que correm com os lobos<\/i>, encontrei muitos trechos que falam dessa busca, dessa redescoberta.<\/p>\n N\u00e3o foi escrito pra mim, foi escrito pras mulheres. Muitas outras que, como eu, tamb\u00e9m deixaram algo no caminho.<\/p>\n A autora \u2013 Clarissa Pinkola Est\u00e9s \u2013 aborda o conto Sapatinhos Vermelhos e, atrav\u00e9s dele, trata das tradi\u00e7\u00f5es coletivas, de quem sustenta o status quo<\/i> e que est\u00e1 sempre nos dizendo: “comporte-se, n\u00e3o crie confus\u00e3o, n\u00e3o pense demais, n\u00e3o se superestime, n\u00e3o chame a aten\u00e7\u00e3o, seja mais uma c\u00f3pia, seja simp\u00e1tica, aceite tudo, mesmo que n\u00e3o goste, mesmo que n\u00e3o se ajuste a voc\u00eas, que n\u00e3o seja do tamanho certo e que machuque”<\/i>\u00a0(p. 260).<\/p>\n E ela fala de como a gente se adapta a esse modelo. Mas que, uma hora, quem a gente \u00e9 teima em aparecer.<\/p>\n “Por isso, igual a muitas mulheres antes e depois de mim, passei minha vida como uma criatura disfar\u00e7ada. \u00c0 semelhan\u00e7a da parentela que me precedeu, andei cambaleante em saltos altos e fui a igreja usando vestido e chap\u00e9u. No entanto, minha cauda fabulosa muitas vezes aparecia por baixo da bainha do vestido, e minhas orelhas se contorciam at\u00e9 meu chap\u00e9u sair do lugar, no m\u00ednimo cobrindo meus olhos e \u00e0s vezes indo parar do outro lado da nave” (p. 18).<\/i><\/p>\n Como disse, n\u00e3o sou a primeira e n\u00e3o serei a \u00faltima que disfar\u00e7ou a cauda e as orelhas por anos, mas uma dia decidiu que queria parar de usar vestido e chap\u00e9u.<\/p>\n No livro, ela chama esse retorno de resgate da mulher selvagem.\u00a0Mesmo sem ter certeza se gosto da \u201cselvageria\u201d, agora que reencontrei essa Gabriela, n\u00e3o consigo mais parar.<\/strong><\/p>\n Est\u00e9s explica: “Uma vez que as mulheres a tenham perdido e a tenham recuperado, elas lutar\u00e3o com garra para mant\u00ea-la, pois com ela suas vidas criativas florescem; seus relacionamentos adquirem significado, profundidade e sa\u00fade; seus ciclos de sexualidade, criatividade, trabalho e divers\u00e3o s\u00e3o restabelecidos, elas deixam de ser alvo para as atividades predat\u00f3rias dos outros; segundo as leis da natureza, elas t\u00eam igual direito a crescer e vicejar. Agora, seu cansa\u00e7o do final do dia tem como origem o trabalho e esfor\u00e7o satisfat\u00f3rios, n\u00e3o o fato de viverem enclausuradas num relacionamento, num emprego ou num estado de esp\u00edrito pequenos demais. Elas sabem instintivamente quando as coisas devem morrer e quando devem viver; elas sabem como ir embora e como ficar”\u00a0<\/i>(p. 20).<\/p>\n N\u00e3o precisava ter escrito nada, n\u00e9? J\u00e1 estava tudo dito.<\/p>\n Beijo pra voc\u00eas.<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":" Ser aceita \u00e9 tudo que a gente quer. 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