Recentemente escrevi um texto<\/a> falando da import\u00e2ncia de questionar e modificar o uso da linguagem, de modo a n\u00e3o reproduzir estere\u00f3tipos machistas. Hoje vamos falar um pouco de express\u00f5es populares e de como elas contribuem para a objetifica\u00e7\u00e3o, opress\u00e3o e naturaliza\u00e7\u00e3o da viol\u00eancia contra mulheres.\u00a0<\/span><\/p>\n

Jos\u00e9 Eust\u00e1quio Alves escreveu um artigo\u00b9 muito interessante com o objetivo de \u201cmostrar como o discurso da domina\u00e7\u00e3o masculina tem como base valores faloc\u00eantricos que refor\u00e7am a discrimina\u00e7\u00e3o social contra as mulheres e os homossexuais\u201d. Segundo o autor, desde os tempos da democracia grega, j\u00e1 havia uma divis\u00e3o bastante clara entre o espa\u00e7o p\u00fablico e o privado. Aos homens, era destinada a produ\u00e7\u00e3o<\/em>, atividade de prest\u00edgio, respons\u00e1vel pela gera\u00e7\u00e3o de recursos. \u00c0s mulheres, cabia a reprodu\u00e7\u00e3o<\/em>, ou seja, a procria\u00e7\u00e3o, o cuidado da prole e a manuten\u00e7\u00e3o da sobreviv\u00eancia di\u00e1ria. Para elas, a gravidez (ainda que indesejada) era uma fatalidade da pr\u00e1tica sexual, enquanto aos homens era poss\u00edvel exercer o sexo pelo prazer, com prostitutas e cortes\u00e3s. Em grande medida, este arranjo permanece assustadoramente atual.<\/p>\n

Jos\u00e9 Eust\u00e1quio apresenta uma s\u00e9rie de ditos populares que confirmam esta ideia. O homem que tem muitas parceiras sexuais, por exemplo, \u00e9 mach\u00e3o, garanh\u00e3o, Don Juan. A mulher? \u00c9 galinha, puta, ninfoman\u00edaca. Quantas vezes j\u00e1 ouvimos a frase: \u201cSe uma dama diz n\u00e3o, ela quer dizer talvez. Se ela diz talvez, ela quer dizer sim. Se ela diz sim, ela n\u00e3o \u00e9 uma dama\u201d? Ditos populares como este confundem as pessoas sobre a no\u00e7\u00e3o de consentimento, descaracterizam o N\u00c3O dito por uma mulher e refor\u00e7am a viol\u00eancia sexual.\u00a0<\/span><\/p>\n

Quanto \u00e0 beleza, n\u00e3o \u00e9 incomum ouvirmos que a mulher deve ter \u201cbarriguinha pra dentro e bundinha pra fora\u201d. At\u00e9 Vinicius de Moraes declarou: \u201cas feias que me desculpem, mas beleza \u00e9 fundamental\u201d. J\u00e1 os padr\u00f5es impostos sobre os homens s\u00e3o muito mais flex\u00edveis, a exemplo do \u201c\u00e9 dos carecas que elas gostam mais\u201d.<\/p>\n

Enquanto que homem p\u00fablico significa homem de prest\u00edgio, estadista, algu\u00e9m que ocupa o espa\u00e7o externo, a conota\u00e7\u00e3o de mulher p\u00fablica \u00e9 de mulher da vida, meretriz, vadia, mulher da rua, prostituta. <\/strong><\/p>\n

Enquanto patrono \u00e9 uma esp\u00e9cie de padrinho, paraninfo, matrona \u00e9 uma mulher madura e corpulenta. Patrim\u00f4nio significa heran\u00e7a, riqueza, conjunto de bens; j\u00e1 matrim\u00f4nio \u00e9 casamento, aquela institui\u00e7\u00e3o t\u00e3o conhecida que beneficia largamente os homens e subjuga as mulheres.<\/p>\n

Papa \u00e9 a pessoa que se destaca em um campo de atividade, \u00e9 algu\u00e9m que sabe tudo sobre algum assunto. Na mesma linha, padre \u00e9 o sacerdote que atende os fi\u00e9is de sua regi\u00e3o. J\u00e1 madre \u00e9 uma religiosa que atende somente a outras freiras. Padrasto \u00e9 o homem que ocupa o lugar do pai dos filhos que sua esposa teve, \u00e9 uma figura socialmente respeitada. A madrasta, por sua vez, costuma ser definida como m\u00e3e pouco carinhosa, ingrata, m\u00e1.<\/p>\n

Rei \u00e9 aquele que se destaca em alguma atividade ou possui muitos bens: rei do gado, rei do futebol, rei da m\u00fasica. J\u00e1 rainha da uva n\u00e3o costuma ser a propriet\u00e1ria de uma vin\u00edcola e sim a mo\u00e7a bonita que ganhou o t\u00edtulo de beldade do ano. Melhor ainda \u00e9 a rainha do lar, a dona de casa respons\u00e1vel pelo matrim\u00f4nio, mas n\u00e3o pelo patrim\u00f4nio.\u00a0<\/span><\/p>\n

No campo da sexualidade, o que n\u00e3o falta s\u00e3o ditos populares que refor\u00e7am o machismo e a viol\u00eancia. Podemos come\u00e7ar pelo terr\u00edvel \u201cn\u00e3o existe mulher que n\u00e3o d\u00e1, existe mulher mal cantada\u201d. Talvez esta seja a origem da carta as francesas que exigiam o \u201cdireito de ser importunadas\u201d (leia cr\u00edtica aqui<\/a>). Na mesma linha, temos o \u201cguarde sua cabra porque meu bode est\u00e1 solto\u201d, \u201csou casado, mas n\u00e3o capado\u201d e o \u201cburro preso tamb\u00e9m pasta\u201d.\u00a0 \u00a0<\/span><\/p>\n

Eu poderia ficar horas listando outros ditos como estes. Mas a ideia desse texto \u00e9 propor que fiquemos alerta para o uso desse tipo de linguagem. Convido voc\u00eas a rejeitarem aforismos machistas, ainda que tradicionais. Pois tradi\u00e7\u00e3o \u00e9 fruto da cultura e a cultura est\u00e1 em constante transforma\u00e7\u00e3o. Sejamos agentes dessa mudan\u00e7a!<\/p>\n

\u00a0\u00b9<\/span>Alves, J. E. D. (2005). G\u00eanero e linguagem na cultura brasileira: elementos para reflex\u00e3o sobre uma diferen\u00e7a<\/i>. In: Loyola, M. A. (org.). Bio\u00e9tica: reprodu\u00e7\u00e3o e g\u00eanero na sociedade contempor\u00e2nea. Rio de Janeiro: Letras Livres. \u00a0<\/span><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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