H\u00e1 dois anos voltei pra advocacia com uma proposta interessante, iria trabalhar com os cem maiores processos de uma grande ind\u00fastria. Lia os imensos processos e fazia pareceres sobre as chances de \u00eaxito de cada um deles. Na verdade, era meio frustrante pra uma pessoa que gosta tanto de gente, como eu. Depois vieram dois mil processos de outra grande ind\u00fastria, todos parecidos, processos de massa. As coisas ficaram, ainda, mais frustrantes pra uma pessoa criativa, como eu.<\/p>\n

Tenho tr\u00eas caracter\u00edsticas que me tornam uma boa profissional: sou criativa, sei me comunicar e me relaciono bem com as pessoas. Estava confinada numa sala, obedecendo a um padr\u00e3o. N\u00e3o foi dif\u00edcil perceber que n\u00e3o ia dar certo, estabeleci um limite:<\/i> a conclus\u00e3o do mestrado. Mar\u00e7o de 2016 chegou e a frustra\u00e7\u00e3o virou inquieta\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

Comecei a planejar uma sa\u00edda, me organizar financeiramente, mil ideias surgiram, neg\u00f3cios constru\u00eddos e desconstru\u00eddos na minha cabe\u00e7a, cursos aos finais de semana e \u00e0 noite, livros, medo e vontade.<\/p>\n

Com outras possibilidades surgindo, o tempo passado dentro da minha roupa de advogada come\u00e7ou a se arrastar e um certa letargia tomou conta de mim. Era como se eu tivesse que esperar oito horas pra anestesia passar e sair correndo pra viver a vida.<\/p>\n

Ent\u00e3o apelidei o per\u00edodo que eu passava ali de horas mortas. As horas mortas devem ter, mais ou menos, uns 120 minutos cada, porque demoram muito pra passar e, quando finalmente passam, te trazem a \u201cdeliciosa\u201d sensa\u00e7\u00e3o de n\u00e3o ter feito nada, mesmo estando muito cansada. As horas mortas te esgotam!<\/p>\n

Fa\u00e7o um par\u00eanteses para explicar que, nesse tempo anestesiada, fazia um esfor\u00e7o enorme pra manter o foco, continuar produtiva e comprometida com o trabalho. Te concentra, te concentra! <\/i>\u00a0Era meu mantra.<\/p>\n

Dito isso, as horas mortas n\u00e3o eram horas improdutivas. N\u00e3o vou entrar no m\u00e9rito do que \u00e9 ser produtivo, de como a produtividade virou uma \u201cdoen\u00e7a\u201d moderna, nem de que a tal produtividade \u00e9 uma inven\u00e7\u00e3o do capitalismo, porque definitivamente essa n\u00e3o \u00e9 uma quest\u00e3o ideol\u00f3gica. Mas preciso dizer que \u00e9 um enorme engano acreditar que o tempo s\u00f3 tem valor quando a gente produz algo que tem pre\u00e7o e \u00e9 remunerado por isso. N\u00e3o \u00e9 monet\u00e1rio.<\/p>\n

Os horas mortas eram, simplesmente, horas em que eu n\u00e3o me sentia viva. N\u00e3o estava vivendo plenamente, n\u00e3o estava empregando meus talentos, n\u00e3o estava me desafiando, n\u00e3o estava me divertindo. N\u00e3o deixava a minha energia ali.<\/p>\n

Milhares de pessoas t\u00eam horas viv\u00edssimas trabalhando, eu mesma j\u00e1 me senti muito viva advogando e, mesmo quando n\u00e3o estive t\u00e3o viva, mas o meu dinheiro era indispens\u00e1vel pra pagar a presta\u00e7\u00e3o da casa, colocava toda a minha energia no que estava fazendo. Assim as horas vivas n\u00e3o precisam ser exatamente alegres, embora eu acredite que, na maioria das vezes, s\u00e3o.\u00a0 Elas podem envolver muito trabalho e estudo, muita aprendizagem e dedica\u00e7\u00e3o e, \u00a0at\u00e9 quando \u00e9 assim, a gente pode se divertir.<\/p>\n

Horas vivas s\u00e3o aquelas em que a gente se sente inteiro no que faz, acredita na import\u00e2ncia daquilo pra si, pra sua fam\u00edlia ou\/e pra sociedade e coloca o seu melhor ali. E esse melhor, pra mim, \u00e9 a energia que a gente tem, a vontade e o prazer de fazer, n\u00e3o importa o qu\u00e3o custoso, demorado e dif\u00edcil possa ser.<\/p>\n

Assim, a diferen\u00e7a fundamental entre as horas mortas e as horas vivas \u00e9 a energia que a gente coloca no que est\u00e1 fazendo.<\/p>\n

Ent\u00e3o os meus dias, depois que eu sa\u00ed do escrit\u00f3rio, foram todos muito vivos? Claro que n\u00e3o!<\/p>\n

Se eu contar pra voc\u00eas quantos minutos passei dentro do Uber carregando meus filhos para cima e para baixo na \u00faltima semana ou o qu\u00e3o intermin\u00e1vel foi a manh\u00e3 que eu passei no F\u00f3rum tirando c\u00f3pias e fazendo protocolos, sem falar no fato de que eu, ainda, n\u00e3o fiz meu imposto de renda e preciso responder uns e-mails chatolinos, voc\u00eas ver\u00e3o de quantas horas mortas s\u00e3o feitos meus dias.<\/p>\n

Mas eu, tamb\u00e9m, tive meus momentos! Deu pra dan\u00e7ar enquanto eu alfinetava minhas costurices, pra comer um brigadeiro com a minha filha, pra fazer a feira org\u00e2nica de s\u00e1bado, pra ver um seriadinho com o marid\u00e3o, pra tomar um caf\u00e9 escrevendo esse post e at\u00e9 desmanchando e refazendo, mil vezes, a mesma costura eu me senti viva. Trabalhando, aprendendo, compartilhando, sonhando, eu estive viva, inteira no que fazia.<\/p>\n

N\u00e3o to falando exatamente sobre o tempo, sua falta, ou abund\u00e2ncia. \u00c9 sobre o que a gente faz com ele.<\/p>\n

Por dias com muitas horas vivas pra todos n\u00f3s!!!<\/p>\n

Grande beijo e muito obrigada por estarem aqui, por lerem e dividirem o seu tempo vivo comigo.<\/p>\n

PS. S\u00f3 depois de ter acabado de escrever esse post, eu descobri que Machado de Assis tinha escrito, l\u00e1 no s\u00e9culo XIX,\u00a0 um poema chamado Horas Vivas, sobre os benef\u00edcios de uma noite bem dormida. Nada de pl\u00e1gio, portanto! S\u00f3 uma feliz coincid\u00eancia!<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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