A carta-manifesto divulgada por um grupo de mulheres francesas [\u00e0s quais talvez valesse a pena guardar os nomes] em um jornal de amplo alcance no seu pa\u00eds, merece nossa aten\u00e7\u00e3o por incont\u00e1veis raz\u00f5es. Que ela tenha sido divulgada logo depois da forte manifesta\u00e7\u00e3o empreendida por atrizes e apresentadoras hollywoodianas na ocasi\u00e3o do Globo de Ouro a favor dos movimentos contra a viol\u00eancia sexual, n\u00e3o deve ter sido mera coincid\u00eancia.<\/p>\n

H\u00e1 cerca de setenta anos, Simone de Beauvoir, \u00edcone do movimento feminista franc\u00eas, afirmava que n\u00e3o existe liberdade sem responsabilidade. Toda exist\u00eancia envolve uma liberdade origin\u00e1ria que est\u00e1 na base de todo e qualquer ato humano. E o fato de escolhermos na mais absoluta solid\u00e3o n\u00e3o nos isenta do compromisso com a universalidade, ou seja, com o outro. Explico.<\/p>\n

Quando tomamos uma decis\u00e3o diante de determinada situa\u00e7\u00e3o, inventamos o valor<\/em>. Elegemos crit\u00e9rios que nos orientam nessa ou naquela dire\u00e7\u00e3o. Esses crit\u00e9rios est\u00e3o baseados em diferentes esferas [moral, religi\u00e3o, fam\u00edlia, conhecimento, etc.] e podemos elencar aqueles que consideramos melhores<\/em>. \u00c9 que o valor n\u00e3o \u00e9 uma entidade absoluta, ao contr\u00e1rio, ele \u00e9 mundano. E esse conflito inerente \u00e0 escolha \u00e9 o que fundamenta nosso posicionamento \u00e9tico e nos obriga a assumir um compromisso com a humanidade a cada vez que decidimos acerca de algo. Isso \u00e9 o mesmo que dizer que quando escolho para mim, abro uma possibilidade humana. \u00c9 perguntar: e se todo mundo fizesse como eu? E \u00e9 compreender que n\u00e3o existe liberdade sem responsabilidade. \u00c9 a condi\u00e7\u00e3o humana. Fora disso, \u00e9 m\u00e1-f\u00e9. Voc\u00ea n\u00e3o engana s\u00f3 o outro, mas a si mesmo junto.<\/p>\n

Assim, falar de liberdade sexual<\/em> \u00e9 falar tamb\u00e9m<\/em> de responsabilidade, que, nesse caso, pode ser traduzida por consentimento<\/em>. O que as mulheres reivindicam em rela\u00e7\u00e3o aos homens e \u00e0 sexualidade \u00e9 protagonismo em rela\u00e7\u00e3o ao pr\u00f3prio corpo e \u00e0 linguagem, ou seja, \u00e0 legitimidade do seu n\u00e3o<\/em>.<\/p>\n

Quem \u00e9, afinal, que confunde flerte<\/em> com ass\u00e9dio<\/em>?<\/p>\n

Ningu\u00e9m.<\/p>\n

A d\u00favida s\u00f3 aparece quando se tem medo.<\/p>\n

A d\u00favida apenas atormenta quem est\u00e1 sujeito a uma rela\u00e7\u00e3o baseada em poderes desiguais. Porque quando \u00e9 unilateral, n\u00e3o existe prazer e sim medo. E h\u00e1 muito sabemos que \u201ca viol\u00eancia \u00e9 uma maneira de silenciar as pessoas, de negar-lhes a voz e a credibilidade, de afirmar que o direito de algu\u00e9m de controlar vale mais do que o direito delas de existir\u201d [Solnit, 2017, p.17]. E se uma das partes ocupa historicamente o papel de pessoa subjugada, subalterna, inferior, \u00e9 preciso acender o alerta. Porque existe um \u201ccont\u00ednuo que se estende de um pequeno incidente social desagrad\u00e1vel at\u00e9 o silenciamento violento e a morte violenta\u201d [Solnit, 2017, p.27]. Basta olhar as estat\u00edsticas para entender o lugar do estupro e do feminic\u00eddio em nossa sociedade. E no caso das den\u00fancias de Hollywood, estamos falando de hist\u00f3rias de ass\u00e9dio sexual que efetivamente amea\u00e7am o status quo<\/em>. Portanto, n\u00e3o existe e n\u00e3o pode existir feminismo que n\u00e3o leve em conta a classe, a ra\u00e7a, o g\u00eanero, a etnia, a gera\u00e7\u00e3o, a condi\u00e7\u00e3o f\u00edsica e a hist\u00f3ria.<\/p>\n

\u00c9 tempo de colocarmos na pauta a hist\u00f3ria das pessoas que foram vencidas<\/em>, como dizia Walter Benjamin. \u00c9 tempo de recontar. \u00c9 tempo de reformar tudo. De come\u00e7ar pela linguagem. Ent\u00e3o, sim, \u201cn\u00e3o se pode falar mais nada\u201d. A partir de agora \u00e9 preciso pensar antes de agir, \u00e9 preciso entender de uma vez por todas que n\u00e3o existe liberdade sem responsabilidade, sob pena de repetir a hist\u00f3ria. E no caso do ass\u00e9dio sexual, colocar na v\u00edtima o peso da culpa ou da solu\u00e7\u00e3o \u00e9 o mesmo que tratar a viol\u00eancia como algo dado, institu\u00eddo, quando, na verdade, trata-se de uma cultura em que homens e mulheres est\u00e3o envolvidos igualmente no sentido de transform\u00e1-la.<\/p>\n

Mas a insist\u00eancia enfim arruinou nossa paci\u00eancia.<\/p>\n

E com ela foi suplantada toda e qualquer ingenuidade que restava.<\/p>\n

N\u00e3o seremos mais intimidadas.<\/p>\n

Essa carta francesa \u00e9 como uma viagem no t\u00fanel do tempo. Resgatada do al\u00e9m com seus temas e argumentos h\u00e1 muito superados pelas lutas feministas, ela parece implorar por respostas. \u00c9 urgente uma atualiza\u00e7\u00e3o. Essa fala pertence a um mundo que n\u00e3o existe mais. As mulheres que ainda n\u00e3o entenderam que \u00e9 delas que se trata e que al\u00e9m delas existem milh\u00f5es de outras vivendo em condi\u00e7\u00f5es completamente diferentes das suas, ignoram tamb\u00e9m que ali na rua que passa em frente as suas casas, existe um padr\u00e3o de viol\u00eancia contra as mulheres institu\u00eddo e naturalizado. Padr\u00e3o que, muitas vezes, vive sorrateiramente dentro de suas pr\u00f3prias casas.<\/p>\n

Considerar, ainda, que o universo das artes est\u00e1 isento de pensar a si mesmo \u00e9 uma \u00f3tima maneira de prescindir da \u00e9tica mais elementar e transformar esse terreno numa esfera sagrada de intoc\u00e1veis. Uma ideia como essa perpetua a no\u00e7\u00e3o de que a autoridade de quem cria \u00e9 absoluta, que seus direitos s\u00e3o irrestritos e que sua legitimidade ultrapassa a de que qualquer outra pessoa. Esse sistema hoje tem um nome espec\u00edfico: machismo estrutural. E no caso em quest\u00e3o: cultura do estupro.<\/p>\n

N\u00e3o se trata de uma moda e sim, mais uma vez, de uma tentativa de \u201csilenciar e punir as mulheres por reivindicarem voz, poder e o direito de participar\u201d [Solnit, 2017, p.46].<\/p>\n

\u00c9 isso: luta pela sobreviv\u00eancia. E n\u00e3o tem mais volta [#naotemmaisvolta]. Agora temos voz. E vamos continuar a afirmar que esse mundo tamb\u00e9m \u00e9 nosso, at\u00e9 que ele seja, de fato.<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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