At\u00e9 que ponto o temperamento de um homem e de uma mulher \u00e9 biologicamente determinado pelo sexo? Seriam os homens inevitavelmente agressivos e as mulheres invariavelmente passivas? Essas s\u00e3o quest\u00f5es para as quais ainda n\u00e3o temos respostas definitivas. Pois a antrop\u00f3loga americana Margaret Mead<\/a> se debru\u00e7ou sobre o assunto j\u00e1 na d\u00e9cada de 1920.<\/p>\n

Os termos usados por Mead, \u00e0 \u00e9poca, foram Sexo e temperamento<\/a> – esse \u00e9, ali\u00e1s, o nome do livro origin\u00e1rio da pesquisa. Por\u00e9m, referem-se ao que hoje entendemos como papeis de g\u00eanero – terminologia que passou a ser utilizada somente a partir dos anos 1970. Sim, pois \u00e9 preciso diferenciar sexo de g\u00eanero. Sexo corresponde \u00e0s caracter\u00edsticas biol\u00f3gicas, anat\u00f4micas e f\u00edsicas com as quais nascemos. J\u00e1 g\u00eanero refere-se \u00e0s expectativas que a sociedade nutre em rela\u00e7\u00e3o ao que \u00e9 feminino e ao que \u00e9 masculino. Exemplo disso \u00e9 que, de maneira geral, ainda hoje espera-se que mulheres sejam passivas, compreensivas e maternais, enquanto que homens sejam fortes, corajosos e agressivos.<\/p>\n

Logo no come\u00e7o do livro, Margaret avisa que n\u00e3o se trata de uma obra sobre feminismo: “Este estudo [\u2026] n\u00e3o \u00e9 um tratado sobre os direitos da mulher, nem uma pesquisa das bases do feminismo. \u00c9, muito simplesmente, um relato de como tr\u00eas sociedades primitivas agruparam suas atitudes sociais em rela\u00e7\u00e3o ao temperamento” (p. 22). Antes de prosseguirmos, destaco que, aos olhos de hoje, um estudo como este – uma observa\u00e7\u00e3o participante, quando o pesquisador praticamente mora com os pesquisados – tem uma s\u00e9rie de implica\u00e7\u00f5es \u00e9ticas a respeito de como descrever \u201co outro\u201d. O pr\u00f3prio campo da antropologia sofreu duras cr\u00edticas neste sentido nas \u00faltimas d\u00e9cadas e eu, como pesquisadora, n\u00e3o concordo inteiramente com os termos \u201ctribo\u201d e \u201cprimitivo\u201d utilizados por ela ao longo do livro. Sugiro, em seu lugar, falar de “povos tradicionais”. Apesar disso, n\u00e3o s\u00f3 esta como outras obras de Mead tiveram um grande impacto sobre os debates de g\u00eanero e feminismo e influenciaram fortemente o movimento pela libera\u00e7\u00e3o nas mulheres nos anos 1960.<\/p>\n

A pesquisa consistiu em estudar intimamente tr\u00eas povos da Nova Guin\u00e9, no sudoeste do Pac\u00edfico – os Arapesh, os Mundugumor e os Tchambuli (aqui chamados de povo A., povo M. e povo T., respectivamente). O livro \u00e9 bastante descritivo, por isso trago apenas alguns trechos sobre os diferentes \u201ctemperamentos” observados pela pesquisadora a respeito de homens e mulheres. Quanto ao povo A., a antrop\u00f3loga percebeu que \u201cos pais mostram-se t\u00e3o pouco embara\u00e7ados quanto as m\u00e3es em remover os excrementos das crian\u00e7as pequenas, e t\u00eam tanta paci\u00eancia quanto suas esposas em persuadir um filho pequeno a comer a sopa [\u2026]. O escrupuloso cuidado di\u00e1rio com as crian\u00e7as pequenas, com sua rotina, suas exaspera\u00e7\u00f5es, seus choramingos [\u2026], \u00e9 t\u00e3o apropriado ao homem quanto \u00e0 mulher A.\u201d (p. 62).<\/p>\n

Em contraste, “os l\u00edderes [do povo M] s\u00e3o conhecidos na comunidade como ‘os verdadeiros homens maus’, homens agressivos, \u00e1vidos de poder e prest\u00edgio, homens que tomaram muito mais do que seu quinh\u00e3o das mulheres da comunidade, e que tamb\u00e9m adquiriram, por compra ou roubo, mulheres das tribos vizinhas; homens que n\u00e3o temem a ningu\u00e9m e que s\u00e3o arrogantes e suficientemente seguros para trair impunemente a quem desejarem\u201d (p. 185). Por fim, quanto ao povo T. “todo homem \u00e9 um artista e a maioria \u00e9 h\u00e1bil n\u00e3o apenas numa arte, por\u00e9m em v\u00e1rias: na dan\u00e7a, na escultura, no tran\u00e7ado, na pintura, etc” (p. 239). J\u00e1 “as mulheres dominam a cena. [T\u00eam] uma personalidade social muito mais dominadora e definida do que \u00e9 usualmente desenvolvida nas mulheres\u201d (p. 259). Ou seja, os tr\u00eas povos n\u00e3o poderiam ter perfis mais diferentes. Mead conclui que<\/p>\n

o ideal A. \u00e9 o homem d\u00f3cil e suscet\u00edvel, casado com uma mulher d\u00f3cil e suscet\u00edvel; o ideal M. \u00e9 um homem violento e agressivo, casado com uma mulher tamb\u00e9m violenta e agressiva. Na terceira tribo, deparamos verdadeira invers\u00e3o das atitudes sexuais de nossa pr\u00f3pria cultura [a americana], sendo a mulher o parceiro dirigente, dominador e impessoal, e o homem a pessoa menos respons\u00e1vel e emocionalmente dependente (p. 268).<\/strong><\/p>\n

E o que isso nos diz sobre os estere\u00f3tipos de g\u00eanero dos dias de hoje? Ao estudar tr\u00eas povos tradicionais que tiveram pouca influ\u00eancia da cultura ocidental e pouco contato entre si, Margaret nos mostra que, ao contr\u00e1rio de suas pr\u00f3prias expectativas pessoais – \u201ceu compartilhava a cren\u00e7a geral da nossa sociedade de que havia um temperamento ligado ao sexo natural\u201d (p. 27) –\u00a0 n\u00e3o existem comportamentos inatos associados a um ou outro g\u00eanero e que, portanto, tais comportamentos s\u00e3o socialmente constru\u00eddos. Nas palavras dela:<\/p>\n

Somos for\u00e7ados a concluir que a natureza humana \u00e9 quase incrivelmente male\u00e1vel, respondendo acurada e diferentemente a condi\u00e7\u00f5es culturais contrastantes. As diferen\u00e7as entre indiv\u00edduos que s\u00e3o membros de diferentes culturas [\u2026] devem ser atribu\u00eddas quase inteiramente \u00e0s diferen\u00e7as de condicionamento, em particular durante a primeira inf\u00e2ncia, e a forma deste condicionamento \u00e9 culturalmente determinada. As padronizadas diferen\u00e7as de personalidade entre os sexos s\u00e3o desta ordem, cria\u00e7\u00f5es culturais \u00e0s quais cada gera\u00e7\u00e3o, masculina e feminina, \u00e9 treinada a conformar-se (p. 269).<\/strong><\/p>\n

Ou seja, Margaret evidencia que a educa\u00e7\u00e3o ou o “condicionamento na primeira inf\u00e2ncia” \u00e9 a chave para a constru\u00e7\u00e3o dos papeis de g\u00eanero que os adultos exercer\u00e3o na sociedade. \u00c0s vezes fica dif\u00edcil perceber a \u201colho nu\u201d onde est\u00e3o tais ensinamentos sobre g\u00eanero. Mas \u00e9 s\u00f3 porque estamos t\u00e3o acostumados aos padr\u00f5es que eles desaparecem, ou, em outras palavras, se “naturalizam”. Mas tudo come\u00e7a no dia em que vestimos as meninas de rosa e os meninos de azul. Que aceitamos que meninas s\u00e3o \u201cquietinhas\u201d e meninos s\u00e3o \u201cagitados\u201d. Que acreditamos que bal\u00e9 \u00e9 atividade para meninas e futebol \u00e9 para meninos. Que ensinamos coragem aos meninos e delicadeza \u00e0s meninas. Que incentivamos as meninas a pintarem as unhas aos 4 anos e dizemos aos meninos da mesma idade que eles n\u00e3o podem chorar. E assim, dia ap\u00f3s dia, as crian\u00e7as ouvem frases como essas da boca de suas m\u00e3es, pais, av\u00f3s, tios, professores e tantas outras pesssoas em quem confiam, e assim acabam internalizando o que \u00e9 esperado para cada g\u00eanero. \u00c9 mesmo uma coisa silenciosa, por\u00e9m consistente e muitas vezes nefasta.<\/p>\n

Mas por que os papeis de g\u00eanero s\u00e3o uma coisa ruim? Porque limitam as potencialidades dos indiv\u00edduos. Porque se um homem escolhe ser enfermeiro e uma mulher escolhe ser bombeira, ambos ter\u00e3o sua sexualidade questionada. Porque h\u00e1 pouco espa\u00e7o para homens serem sens\u00edveis e mulheres serem l\u00edderes. Permita-se, \u00e0 convite de Mead, imaginar uma sociedade “onde escrever \u00e9 aceito como profiss\u00e3o que ambos os sexos podem seguir com perfeita conveni\u00eancia, [ent\u00e3o] os indiv\u00edduos dotados de habilidade para escrever n\u00e3o precisam ser privados disso por causa do sexo, nem necessitam, se escreverem, duvidar de sua masculinidade ou feminilidade essencial\u201d (p. 302). Olhando assim, parece t\u00e3o \u00f3bvio n\u00e9? Ao descontruir nossas expectativas de g\u00eanero, permitimos que todos os seres humanos flores\u00e7am a partir de suas potencialidades, simples assim.<\/p>\n

A boa not\u00edcia que Margaret Mead nos traz \u00e9 que, se a educa\u00e7\u00e3o \u00e9 a chave para moldar os papeis de g\u00eanero, o poder de transforma\u00e7\u00e3o est\u00e1 nas nossas m\u00e3os como pais e m\u00e3es. Podemos ensinar para as nossas filhas e filhos uma coisa chamada liberdade! Num mundo ideal imaginado por Mead e por mim tamb\u00e9m,<\/p>\n

a sociedade [\u2026] poder\u00e1 abandonar suas diversas tentativas de fazer com que os meninos lutem e as meninas permane\u00e7am passivas, ou de fazer com que todas as crian\u00e7as lutem, e, ao inv\u00e9s, plasmar nossas institui\u00e7\u00f5es educacionais de modo a desenvolver plenamente o menino que mostra uma capacidade de comportamento maternal e a menina que apresenta uma capacidade oposta que \u00e9 estimulada pela luta contra obst\u00e1culos. Nenhuma habilidade, nenhuma aptid\u00e3o especial, nenhuma vivacidade de imagina\u00e7\u00e3o ou precis\u00e3o de pensamento passaria ignorada por ser a crian\u00e7a que as possu\u00edsse de\u00a0 um sexo e n\u00e3o do outro. Nenhuma crian\u00e7a poderia ser implacavelmente amoldada a um padr\u00e3o de comportamento, mas, em vez disso, existiriam muitos padr\u00f5es, num mundo que aprendeu a autorizar a cada indiv\u00edduo o padr\u00e3o mais compat\u00edvel com seus dotes (p. 302).<\/strong><\/p>\n

Mundo incr\u00edvel esse, n\u00e3o?<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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