Virginia Woolf foi uma mulher incr\u00edvel. Educada em casa por professores particulares e por seu pai, um escritor, historiador, ensa\u00edsta e bi\u00f3grafo – foi impedida de frequentar a faculdade por ser mulher. Apesar disso, teve uma carreira brilhante como escritora e influenciou a sociedade liter\u00e1ria de Londres especialmente durante o per\u00edodo entre-guerras. Al\u00e9m de ter vivido in\u00fameras mortes de pessoas pr\u00f3ximas, entre elas sua m\u00e3e, sua irm\u00e3 e irm\u00e3o, bi\u00f3grafos e relatos da pr\u00f3pria autora revelam ainda que ela sofreu abuso sexual na inf\u00e2ncia por seus dois meio-irm\u00e3os. Somado ao particular calv\u00e1rio de sua vida privada, Virginia viveu um per\u00edodo de guerras que tamb\u00e9m a marcou profundamente\u00a0at\u00e9 sua morte por suic\u00eddio, em 1941.<\/p>\n
Virginia foi e segue sendo uma voz muito importante para o feminismo. Posicionou-se contra diversas tradi\u00e7\u00f5es liter\u00e1rias, pol\u00edticas e sociais da era vitoriana. A moral da \u00e9poca condenava as mulheres ao sil\u00eancio sobre suas insatisfa\u00e7\u00f5es e frustra\u00e7\u00f5es. Virginia desafiou a norma que colocava imperativamente a mulher como m\u00e3e e dona de casa. Virginia n\u00e3o teve filhos, tampouco foi dona de casa. Ao herdar uma pequena fortuna de uma tia, conquistou a liberdade de escrever e expressar-se do modo que desejava. \u00c9 disso que trata a obra Hoje trago um trecho deste livro que considero simplesmente fabuloso. Fabuloso pela oportunidade que nos traz de imaginar uma outra vida poss\u00edvel para n\u00f3s mulheres. Todas as mulheres. Em todas as \u00e9pocas, seja na era medieval ou no s\u00e9culo XXI. Virginia imaginou que o escritor brit\u00e2nico William Shakespeare teve uma irm\u00e3, t\u00e3o inteligente e talentosa quanto ele. Uma irm\u00e3 que ansiava ardentemente viver de sua arte, ganhar o mundo, expressar-se. Mas que, por ser mulher, acabou sendo tolhida em diversos momentos da vida – pelo pai, pela fam\u00edlia, por outros homens, pela sociedade patriarcal.<\/p>\n Este texto de 1929 \u00e9 tristemente atual. Quantas outras irm\u00e3s de Shakespeare existem por a\u00ed, sentadas ao nosso lado no \u00f4nibus, empurrando carrinhos de beb\u00ea ou lavando privadas? Quantas mulheres incr\u00edveis e talentosas voc\u00ea conhece que n\u00e3o tiveram a oportunidade de colocar seu talento \u00e0 prova?<\/p>\n Com voc\u00eas, Virginia Woolf:<\/p>\n Seja como for, n\u00e3o pude deixar de pensar, enquanto olhava as obras de Shakespeare na prateleira, que o bispo tinha raz\u00e3o pelo menos nisso: teria sido completa e inteiramente imposs\u00edvel a qualquer mulher ter escrito as pe\u00e7as de Shakespeare na \u00e9poca de Shakespeare. Permitam-me imaginar, j\u00e1 que \u00e9 t\u00e3o dif\u00edcil descobrir fatos, o que teria acontecido se Shakespeare tivesse tido uma irm\u00e3 maravilhosamente dotada, chamada, digamos, Judith. O pr\u00f3prio Shakespeare, muito provavelmente (sua m\u00e3e era herdeira), foi para a escola prim\u00e1ria, onde deve ter aprendido latim \u2014 Ov\u00eddio, Virg\u00edlio e Hor\u00e1cio \u2014 e os fundamentos de gram\u00e1tica e l\u00f3gica. Ele era, como \u00e9\u00a0<\/i>sabido, um menino rebelde que ca\u00e7ava coelhos, e talvez tenha atirado num cervo. Teve, bem antes do que deveria, de casar-se com uma mulher da vizinhan\u00e7a, que lhe deu um filho bem mais depressa do que era conveniente. Essa travessura o levou a tentar a sorte em Londres. <\/i><\/p>\n Tinha, ao que parece, gosto pelo teatro; come\u00e7ou segurando cavalos \u00e0 entrada do palco. Logo conseguiu trabalho no teatro, tornou-se um ator de sucesso e viveu no centro do universo, encontrando todo mundo, conhecendo todo mundo, praticando sua arte nos tablados, exercitando o esp\u00edrito humor\u00edstico nas ruas e at\u00e9 ganhando acesso ao pal\u00e1cio da rainha. Enquanto isso, sua extraordinariamente bem-dotada irm\u00e3, suponhamos, permanecia em casa. Era t\u00e3o audaciosa, t\u00e3o imaginativa, t\u00e3o ansiosa por ver o mundo quanto ele. Mas n\u00e3o foi mandada \u00e0 escola. N\u00e3o teve oportunidade de aprender gram\u00e1tica e l\u00f3gica, quanto menos ler Hor\u00e1cio e Virg\u00edlio. Pegava um livro de vez em quando, talvez algum do irm\u00e3o, e lia algumas p\u00e1ginas. Mas nessas ocasi\u00f5es, os pais entravam e lhe diziam que fosse remendar as meias ou cuidar do guisado e que n\u00e3o andasse no mundo da lua com livros e pap\u00e9is. Com certeza, falavam-lhe com firmeza, por\u00e9m bondosamente, pois eram pessoas abastadas que conheciam as condi\u00e7\u00f5es de vida para uma mulher e amavam a filha \u2014 a rigor, \u00e9 bem mais prov\u00e1vel que ela fosse a menina dos olhos do pai. Talvez ela rabiscasse algumas p\u00e1ginas \u00e0s escondidas no dep\u00f3sito de ma\u00e7\u00e3s do s\u00f3t\u00e3o, mas tinha o cuidado de ocult\u00e1-las ou atear-lhes fogo. Cedo, por\u00e9m, antes de entrar na casa dos vinte anos, ela deveria ficar noiva do filho de um negociante de l\u00e3 da vizinhan\u00e7a. Reclamou do casamento, que lhe era odioso, e por isso foi duramente surrada pelo pai. Depois, ele parou de repreend\u00ea-la. Implorou-lhe, em vez disso, que n\u00e3o o magoasse, n\u00e3o o envergonhasse nessa quest\u00e3o do casamento. Ele lhe daria um colar de p\u00e9rolas ou uma linda an\u00e1gua, disse, e havia l\u00e1grimas em seus olhos. Como poderia ela desobedecer-lhe? Como poderia partir-lhe o cora\u00e7\u00e3o? <\/i><\/p>\n Somente a for\u00e7a do pr\u00f3prio talento levou-a a faz\u00ea-lo: fez um pequeno pacote com seus pertences, deixou-se escorregar por uma corda numa noite de ver\u00e3o e tomou a estrada para Londres. Ainda n\u00e3o tinha dezessete anos. Os p\u00e1ssaros que cantavam nas sebes n\u00e3o eram mais musicais do que ela. Judith tinha o mais vivido pendor, um dom como o do irm\u00e3o, para a melodia das palavras. Como ele, tinha uma predile\u00e7\u00e3o pelo teatro. Ficou \u00e0 entrada de um; queria representar, disse. Os homens riram-lhe no rosto. O gerente \u2014 um homem gordo e falador \u2014 soltou uma gargalhada. Ele berrou alguma coisa sobre poodles dan\u00e7ando e mulheres representando \u2014 nenhuma mulher, disse ele, tinha qualquer possibilidade de ser atriz. E insinuou. . . voc\u00eas podem imaginar o qu\u00ea. Ela n\u00e3o conseguiu obter nenhuma forma\u00e7\u00e3o em seu of\u00edcio. Poderia ao menos procurar jantar numa taberna ou perambular pelas ruas \u00e0 meia-noite? Apesar disso, seu talento era para a fic\u00e7\u00e3o, e desejava com ardor alimentar-se abundantemente da vida dos homens e mulheres e do estudo de seus estilos. Finalmente \u2014 pois era muito jovem e tinha o rosto singularmente parecido com o do poeta Shakespeare, com os mesmos olhos cinzentos e sobrancelhas arqueadas \u2014, finalmente, o empres\u00e1rio Nick Greene compadeceu-se dela. Judith viu-se gr\u00e1vida desse cavalheiro e ent\u00e3o \u2014 quem pode medir o fogo e a viol\u00eancia do cora\u00e7\u00e3o do poeta quando capturado e enredado num corpo de mulher? \u2014 matou-se numa noite de inverno, e est\u00e1 enterrada em alguma encruzilhada onde agora param os \u00f4nibus em frente ao Elephant and Castle. <\/i><\/p>\n \u00c9 mais ou menos assim que se daria a hist\u00f3ria, penso eu, se uma mulher na \u00e9poca de Shakespeare tivesse tido a genialidade de Shakespeare. De minha parte, por\u00e9m, concordo com o falecido bispo, se bispo ele era: nem pensar que alguma mulher da \u00e9poca de Shakespeare tivesse o g\u00eanio de Shakespeare. Isso porque um g\u00eanio como o de Shakespeare n\u00e3o nasce entre pessoas trabalhadoras, sem instru\u00e7\u00e3o e humildes. N\u00e3o nasceu na Inglaterra entre os sax\u00f5es e os bret\u00f5es. N\u00e3o nasce hoje nas classes oper\u00e1rias. Como poderia ent\u00e3o ter nascido entre mulheres, cujo trabalho come\u00e7ava, de acordo com o professor Trevelyan, quase antes de largarem as bonecas, que eram for\u00e7adas a ele por seus pais e presas a ele por todo o poder da lei e dos costumes? N\u00e3o obstante, alguma esp\u00e9cie de talento deve ter existido entre as mulheres, como deve ter existido entre as classes oper\u00e1rias. Vez por outra, uma Emily Bront\u00eb, ou um Robert Burns, explode numa chama e prova sua presen\u00e7a. Mas certamente esse talento nunca chegou ao papel. Quando, por\u00e9m, lemos sobre uma feiticeira atirada \u00e0s \u00e1guas, sobre uma mulher possu\u00edda por dem\u00f4nios, sobre uma bruxa que vendia ervas, ou at\u00e9 sobre um homem muito not\u00e1vel que tinha m\u00e3e, ent\u00e3o penso estarmos na trilha de uma romancista perdida, uma poetisa reprimida, de alguma Jane Austen muda e ingl\u00f3ria, alguma Emily Bront\u00eb que fazia saltar os miolos no pantanal ou careteava pelas estradas, enlouquecida pela tortura que o talento lhe impunha. De fato, eu me arriscaria a supor que An\u00f4nimo, que escreveu tantos poemas sem assin\u00e1-los, foi muitas vezes uma mulher.<\/i><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":" Virginia Woolf foi uma mulher incr\u00edvel. Educada em casa por professores particulares e por seu pai, um escritor, historiador, ensa\u00edsta e bi\u00f3grafo – foi impedida de frequentar a faculdade por ser mulher. 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