A globaliza\u00e7\u00e3o, a internet e a consequente internacionaliza\u00e7\u00e3o dos acontecimentos fazem com que institui\u00e7\u00f5es antes desconhecidas entrem em nossas vidas. Nesse sentido, organismos como a ONU e a OMS passaram a fazer parte de conversas coloquiais que temos, por\u00e9m eu percebo que todos esses entes internacionais s\u00e3o vistos de forma muito abstrata, assim meu objetivo, nas pr\u00f3ximas linhas, \u00e9 explicar um pouco sobre o funcionamento dos Sistemas Internacionais de Direitos Humanos e o impacto que as a\u00e7\u00f5es deles podem ter nas nossas vidas. Em especial, quero tratar sobre as repercuss\u00f5es para esse grupo vulner\u00e1vel – em diferentes medidas – que somos n\u00f3s, as mulheres.
Para come\u00e7ar, \u00e9 preciso ter em mente que existe um sistema global de prote\u00e7\u00e3o dos Direitos Humanos, a ONU, e outros sistemas regionais, como – por exemplo – o europeu e o americano. Esses sistemas s\u00e3o constru\u00e7\u00f5es coletivas, decorrentes da necessidade que o mundo teve de \u201corganizar a conviv\u00eancia\u201d. Assim, os pa\u00edses abdicam de parte de sua soberania em fun\u00e7\u00e3o de um bem maior, tanto \u00e9 que a ONU nasceu no P\u00f3s Segunda Guerra Mundial. Outro ponto importante \u00e9 que esses sistemas se comunicam, mas s\u00e3o aut\u00f4nomos, ou seja: a ONU pode entender um assunto de forma diferente do SIDH (Sistema Interamericano de Direitos Humanos). Na pr\u00e1tica, essas diferen\u00e7as acabam sendo muito pontuais, pois o pano de fundo de todas as medidas s\u00e3o os Direitos Humanos, que s\u00e3o universais.<\/p>\n\n\n

Eu acho muito interessante que todo esse aparato internacional existe h\u00e1 anos e <\/span>trabalha incessantemente para a prote\u00e7\u00e3o dos Direitos Humanos, por\u00e9m poucas <\/span>vezes ouvimos falar deles e da sua organiza\u00e7\u00e3o. Seja fazendo a media\u00e7\u00e3o entre os p<\/span>a\u00edses, seja modernizando o entendimento dos direitos, seja responsabilizando <\/span>violadores; sem esses organismos, o mundo com certeza seria diferente daquele <\/span>que conhecemos hoje.<\/span><\/p>\n\n\n

No dia a dia, ouvimos falar muito da ONU, por\u00e9m o SIDH acaba impactando nossas vidas de forma muito mais direta e sem que percebamos isso na maioria das vezes. Uma quest\u00e3o importante: o seu \u00f3rg\u00e3o julgador n\u00e3o condena pessoas, assim uma v\u00edtima de grave viola\u00e7\u00e3o de direitos humanos pode recorrer diretamente a esse \u00f3rg\u00e3o (inclusive sem a presen\u00e7a de advogado, a Corte fornece um defensor), por\u00e9m o r\u00e9u sempre ser\u00e1 o pa\u00eds em que a viola\u00e7\u00e3o aconteceu, nunca uma pessoa (a ONU \u00e9 diferente neste aspecto). At\u00e9 aqui, tudo pode ter ficado massante e ainda bastante abstrato, mas eu pretendo demonstrar como os entendimentos deste \u00f3rg\u00e3o julgador (Corte Interamericana de Direitos Humanos – Corte IDH daqui pra frente ) refletem nas nossas vidas, a partir do julgamento de alguns casos. O Reconhecimento da Viol\u00eancia contra a Mulher nestes Sistemas A Conven\u00e7\u00e3o de Bel\u00e9m do Par\u00e1 \u00e9 o tratado interamericano que aborda a viol\u00eancia contra a mulher e define que essa pode ser f\u00edsica, sexual ou psicol\u00f3gica e pode ser perpetrada em ambiente dom\u00e9stico, na comunidade ou por agentes do Estado, que cometem ou toleram que ela ocorra1. A primeira vez que a corte enfrentou o caso da viol\u00eancia contra a mulher foi no caso \u201cPres\u00eddio Miguel Castro e Castro vs Per\u00fa\u201d, em 2006. O contexto foi a remo\u00e7\u00e3o de detentos de um pres\u00eddio no Estado do Per\u00fa, sem que houvesse a comunica\u00e7\u00e3o anterior da medida para estes e seus familiares, provocando um motim por parte deles. O resultado do ato foi a morte de v\u00e1rios presos. Da an\u00e1lise dos corpos, ficaram comprovados sinais de tortura, por\u00e9m o mais marcante aqui foi o n\u00edvel maior de agressividade praticado contra as mulheres, al\u00e9m do registro de que a viol\u00eancia teria come\u00e7ado no pavilh\u00e3o feminino. Outro fator relevante \u00e9 que a pr\u00f3pria falta de comunica\u00e7\u00e3o dos familiares causa maiores transtornos para as mulheres, visto que muitas eram m\u00e3es e seus filhos ficaram sem saber dos seus paradeiros; al\u00e9m disso, no grupo de mulheres que sofreu tortura, v\u00e1rias estavam gr\u00e1vidas, o que ocasiona um sofrimento ainda maior, tanto para a mulher que foi v\u00edtima dos maus tratos, quanto para a sua fam\u00edlia. A Corte IDH, ent\u00e3o, condenou o Per\u00fa, com base na Conven\u00e7\u00e3o de Bel\u00e9m do Par\u00e1, a qual inclusive obriga o Estado a se abster de praticar qualquer ato que resulte em viol\u00eancia contra a mulher. 2 Esse caso foi o embri\u00e3o do reconhecimento da viol\u00eancia de g\u00eanero, express\u00e3o que foi explicitamente utilizada pela Corte na decis\u00e3o.<\/p>\n\n\n

A import\u00e2ncia da utiliza\u00e7\u00e3o desse termo \u00e9 o <\/span>reconhecimento de que a circunst\u00e2ncia de serem mulheres foi fator que ocasionou um <\/span>maior sofrimento para as presidi\u00e1rias desse motim. Quest\u00e3o que – por mais corriqueira que <\/span>seja nas nossas vidas – ainda n\u00e3o havia sido abordada pelo sistema interamericano.<\/span><\/p>\n\n\n

Os entendimentos das Cortes Internacionais servem como par\u00e2metros para a aplica\u00e7\u00e3o das leis dos pa\u00edses. A manifesta\u00e7\u00e3o da Corte IDH sobre a exist\u00eancia da viol\u00eancia de g\u00eanero – e a necessidade de puni\u00e7\u00e3o para o Estado que tolera essa conduta – abre portas e indica aos Ju\u00edzes dos pa\u00edses americanos que esta forma de pensar possibilita uma maior salvaguarda dos direitos aos quais o pa\u00eds internacionalmente se submete. O Contexto do Machismo Estrutural Agora, o grande divisor de \u00e1guas dos entendimentos trazidos pela Corte foi o Caso Campo Algodoneiro vs M\u00e9xico. Os fatos envolvem a morte de mulheres na regi\u00e3o da Ciudad Ju\u00e1rez, cujos corpos foram encontrados em frente a um campo de algod\u00e3o, com sinais de tortura e abusos sexuais. A quest\u00e3o foi levada ao organismo internacional em fun\u00e7\u00e3o da forma como as autoridades mexicanas cuidaram da quest\u00e3o: os familiares relataram que a investiga\u00e7\u00e3o n\u00e3o foi tratada com a seriedade necess\u00e1ria. Ocorre que, se em um primeiro momento, a quest\u00e3o foi vista como uma falta de zelo nas investiga\u00e7\u00f5es, posteriormente ficou comprovado que a quest\u00e3o era mais complexa, decorrente da forma como a viol\u00eancia contra a mulher era vista por aquela sociedade e, consequentemente, pelos \u00f3rg\u00e3os p\u00fablicos.
A Corte constatou a ocorr\u00eancia de avalia\u00e7\u00f5es sobre a moralidade da conduta das v\u00edtimas (coment\u00e1rios como: \u201cse estivesse em casa, isso n\u00e3o teria acontecido\u201d foram relatados por testemunhas). Al\u00e9m disso, a regi\u00e3o passava por um per\u00edodo de grande desemprego da popula\u00e7\u00e3o masculina, motivado por uma s\u00e9rie de fatores decorrentes do seu contexto hist\u00f3rico-social. Uma circunst\u00e2ncia bastante simb\u00f3lica \u00e9 o fato de os corpos terem sido encontrados em frente ao sindicato de maquiadoras. <\/p>\n\n\n\n

Pela primeira vez, o termo \u201chomic\u00eddio de mulher por raz\u00f5es de g\u00eanero\u201d foi utilizado nas suas decis\u00f5es, tamb\u00e9m chamado de feminic\u00eddio. O simples homic\u00eddio praticado contra a mulher se diferencia do feminic\u00eddio em fun\u00e7\u00e3o do motivo e do contexto em que o crime ocorre. O machismo estrutural foi reconhecido pelo Sistema Interamericano, pois o feminic\u00eddio \u00e9 decorr\u00eancia direta de uma sociedade mis\u00f3gina. No pr\u00f3ximo texto, eu pretendo abordar os diversos tipos de machismo e a sua forma de atua\u00e7\u00e3o. <\/p>\n\n\n

Por\u00e9m, \u00e9 importante que um aspecto fique claro desde j\u00e1: a viol\u00eancia contra a <\/span>mulher apenas encontra espa\u00e7o em sociedades que culturalmente aceitam (ou at\u00e9 <\/span>incentivam) a discrimina\u00e7\u00e3o de certos corpos. A dor no corpo feminino n\u00e3o choca tanto <\/span>quanto a dor no corpo masculino, isso aconteceu no M\u00e9xico e acontece em v\u00e1rios outros <\/span>pa\u00edses.<\/span><\/p>\n

Nesse sentido, uma das condena\u00e7\u00f5es estabelecidas pela Corte IDH foi a cria\u00e7\u00e3o de uma pol\u00edtica de longo prazo, que garantisse a preven\u00e7\u00e3o e a puni\u00e7\u00e3o de casos como esse. Estudos realizados na World Economic Forum3 demonstram que pa\u00edses em que o acesso \u00e0 sa\u00fade, \u00e0 educa\u00e7\u00e3o, ao mercado de trabalho e \u00e0 participa\u00e7\u00e3o na vida pol\u00edtica s\u00e3o mais igualit\u00e1rios – sob o prisma do g\u00eanero – registram um \u00edndice maior de desenvolvimento humano. Assim, h\u00e1 todo um contexto que permite ou n\u00e3o (na maioria dos casos, de forma impl\u00edcita) que atos de viol\u00eancia contra a mulher sejam praticados e o ambiente dom\u00e9stico \u00e9 um palco prop\u00edcio para isso. Fica claro ent\u00e3o que esse tipo de viol\u00eancia n\u00e3o deve ser vista apenas de forma individualizada, pois – por mais que cada caso guarde peculiaridades que devem ser averiguadas pormenorizadamente – a solu\u00e7\u00e3o passa por mudan\u00e7as sist\u00eamicas, que afetem a sociedade de forma estrutural, trazendo a consci\u00eancia a respeito do patriarcado \u00e0 tona, para os homens, mas tamb\u00e9m para as mulheres.<\/p>","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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