Ela \u00e9, muitas vezes, misteriosa. Chega de mansinho, como se n\u00e3o fizesse quest\u00e3o de estar ali. Com o tempo, nem sempre muito tempo, vai tomando espa\u00e7o, abrindo um buraco pequeno, discreto, revelando aos poucos que est\u00e1 l\u00e1, e n\u00e3o tem intens\u00e3o de partir.<\/p>\n\n\n\n

Nesse ponto, ainda n\u00e3o \u00e9 digna de aten\u00e7\u00e3o. \u201cVai passar.\u201d Penso. \u00c9 s\u00f3 um inc\u00f4modo passageiro. Posso seguir a vida, que j\u00e1 traz muitas outras demandas. Estas, que crescem a cada dia, se multiplicam, como ervas daninhas em terreno f\u00e9rtil. Muito a fazer, pouco tempo para pensar. Refletir sobre algo t\u00e3o pequeno parece in\u00fatil, agora. Mas, ela persiste. Insiste em permanecer ali. E, pior: aumenta sua intensidade.<\/p>\n\n\n\n

\u201cSer\u00e1 poss\u00edvel que essa dor n\u00e3o vai embora?\u201d. Um flesh de pensamento.<\/p>\n\n\n\n

Ela n\u00e3o \u00e9 forte o suficiente para prender minha aten\u00e7\u00e3o. Nem fraca o suficiente para me deixar esquecer. Muita gente precisando da minha ajuda, quanta coisa a realizar, quantas pend\u00eancias, quantos sonhos a serem alcan\u00e7ados, metas a serem cumpridas. O tempo tem passado muito r\u00e1pido. E, por que me importaria com algo t\u00e3o insignificante, diante de tanta coisa acontecendo de pior no mundo?  <\/p>\n\n\n\n

Um dia, me ensinaram que precisava me importar com as outras pessoas. Que eu tinha o dom de cuidar, e que dons s\u00e3o para serem colocados a servi\u00e7o dos outros. Nunca aprendi a dizer \u201cn\u00e3o\u201d. Afinal, significaria me negar a atender uma necessidade. Como poderia? Quero ser uma boa pessoa. E, ser boa, n\u00e3o inclui dizer n\u00e3o a quem precisa. Vou me arranjando como posso. \u00c9 sempre mais bonito dizer que tenho muitas tarefas, que n\u00e3o tenho tempo para bobagens. Para coisas que sejam menos do que essenciais.<\/p>\n\n\n\n

\u201cPensando bem… \u00e0s vezes, \u00e9 solit\u00e1rio ter muito a fazer. Cuidar de tudo e de todos pode ser muito pesado. Mas eu consigo. Sou muito forte, sempre fui.\u201d<\/strong><\/p>\n\n\n\n

Meus pais precisam de cuidados, meus filhos de serem educados, minhas amigas, de apoio, meus irm\u00e3os, de orienta\u00e7\u00e3o. Cada um, uma necessidade espec\u00edfica, que demanda dedica\u00e7\u00e3o. O trabalho precisa estar pronto no prazo. \u201cQue tal, antes do prazo? Seria bom para os neg\u00f3cios.\u201d A conta no banco precisa de saldo. Ser\u00e1 que vai dar para pagar todas as contas? Preciso trabalhar mais. E essa dorzinha que n\u00e3o passa?<\/p>\n\n\n\n

Ela vai ficando mais intensa. Um remedinho, e melhora. N\u00e3o estou conseguindo dormir, outro remedinho resolve. Hoje tem muita coisa para fazer, essa semana, esse m\u00eas… O pa\u00eds passando por um momento bem ruim, o notici\u00e1rio denuncia. Como meu neg\u00f3cio pode sobreviver a esse caos? Preciso de um curso de vendas, de empreendedorismo, economia. Disseram que \u00e9 preciso se reinventar. \u201cCrises se transformam em oportunidades.\u201d Preciso tentar. Leio um artigo sobre ansiedade e penso, por um instante, sobre como essas pessoas devem sofrer. Logo depois, penso que preciso ler mais livros, que antes lia quatro por vez. \u201cPor que n\u00e3o tenho conseguido ler?\u201d Algu\u00e9m diz que preciso organizar minha rotina.<\/p>\n\n\n\n

Nas redes sociais, in\u00fameras promessas de enriquecimento r\u00e1pido, f\u00f3rmulas de sucesso. Incont\u00e1veis pessoas com as vidas transformadas. Cursos de tudo que se pode imaginar, e at\u00e9 do que n\u00e3o se pode. Pessoas dizendo que \u00e9 preciso cuidar mais de si, fazer atividades f\u00edsicas, se alimentar melhor. \u201cO que foi mesmo que eu comi no caf\u00e9 da manh\u00e3?\u201d \u201cEu comi no caf\u00e9 da manh\u00e3?\u201d.  Anoitecendo, e eu nem sei que horas vou poder dormir, se consigo terminar tudo que preciso fazer hoje. E essa dor est\u00e1 piorando.<\/p>\n\n\n\n

Amanhece, e percebo que a dor est\u00e1 muito pior. Meu filho est\u00e1 resfriado, minha m\u00e3e precisa de algu\u00e9m que a leve ao m\u00e9dico para uma consulta, e liga para reclamar da minha pouca aten\u00e7\u00e3o com ela. Recebo mensagem de cliente pedindo para antecipar o servi\u00e7o que hav\u00edamos agendado para daqui a dois dias. Tenho reuni\u00e3o com parceiras hoje, n\u00e3o posso esquecer. Penso em parar um instante para marcar um m\u00e9dico, mas n\u00e3o \u00e9 poss\u00edvel. Anoitece, e eu nem estendi as roupas no varal. Preciso fazer isso hoje ainda, pois, se deixar na m\u00e1quina, amanh\u00e3 terei que lavar novamente.<\/p>\n\n\n\n

J\u00e1 \u00e9 outro dia, e me pego chorando perto da m\u00e1quina de lavar. Est\u00e1 doendo forte, mal consigo respirar. Uma amiga me envia mensagem pedindo ajuda, ela tem passado por maus bocados na vida. Preciso ajuda-la. Acolho, aconselho, e ela fica melhor. Que bom! Posso tentar mais um pouco, afinal, h\u00e1 pessoas com problemas muito mais s\u00e9rios que os meus. \u201cMeu Deus! J\u00e1 estou atrasada para a reuni\u00e3o!\u201d. A gente tem um novo projeto. Acho que agora daria certo, se n\u00e3o tivesse sido preciso ir de ambul\u00e2ncia para o hospital.<\/p>\n\n\n\n

Depois de v\u00e1rios exames, o diagn\u00f3stico: N\u00e3o tenho mais tempo. Estou doente demais para cuidar, para trabalhar, para suportar. Mas… E meus filhos? Meus pais? Meus clientes? Minhas amigas? Minha vida? Preciso de mais tempo. O m\u00e9dico diz que sente muito, mas a situa\u00e7\u00e3o \u00e9 grave. Alerta a fam\u00edlia.<\/p>\n\n\n\n

Olho para os c\u00e9us e penso: Eu preciso de um pouco mais de tempo. N\u00e3o ouvi os p\u00e1ssaros cantarem, n\u00e3o senti o vento no rosto, n\u00e3o me amei o suficiente. E, ser\u00e1 que amei os outros o suficiente, quando ao me negligenciar, agora os privo de mim?<\/em><\/p>\n\n\n\n

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